Wednesday, December 26, 2007

Literatura e Gastronomia – Enrique Vila-Matas e as Ostras

Seria eu capaz de algum dia escrever a partir de uma situação limite, tal como fazia sempre o meu admirado Copi? Isso interrogava-me eu naquele dia enquanto comia ostras com o escritor e Boutade e, enquanto as comia, por um lado recordava-me de Hemingway, que, quando tinha algum dinheiro em Paris, as comia “com o seu forte sabor a mar e o seu toque metálico que o vinho fresco limpava, deixando apenas o sabor a mar e a polpa saborosa”, e por outro lado não parava de pensar na sorte que eu tinha por poder comer aquelas deliciosas ostras, de as poder comer bebendo lentamente o frio líquido de cada uma das conchas e depois perder esse gosto com o límpido sabor do vinho branco seco.
Enrique Vila-Matas, Paris Nunca se Acaba

A minha relação com as ostras não segue o chavão normalmente associado a este lendário marisco. Ou se adora, ou se detesta, costuma-se dizer. Eu gosto de ostras, gosto até muito, mas não é um bicho que me faça sonhar durante meses com a longa viagem ou com o jantar de celebração que me permitirá provar o sabor a mar e a polpa saborosa. A qualidade, a frescura e até a variedade da ostra varia muito de restaurante para restaurante, e até de país para país. Por isso, não é com a simples evocação do literário molusco que salivo, mas com as recordações deste quando associadas a certos lugares, não só pela magia e exotismo dessas paragens, mas também pela suprema qualidade das ostras que lá provei. Estou a falar de dois lugares muito distantes um do outro. Aqui perto, temos Cacela-Velha, e a famosa tasca que enche como um ovo durante os concorridos dias de Verão algarvios, a qual, para além de umas ostras fresquíssimas, servidas cruas com pimenta e limão ao lado, também nos dá a provar as fantásticas amêijoas da Ria Formosa. Do outro lado do mundo chegam-me memórias ternas das melhores ostras que já comi. Foi no primeiro andar mercado do peixe de Busan (o Jagalchi), no restaurante, e foram-me servidas enquanto esperava pelo final da cocção do caranguejo-real de quatro quilos que uns minutos antes havia escolhido numa das bancas do mercado, quando este ainda se mexia no enorme aquário. Inesquecível.

Carlos M. Fernandes, Busan, Coreia do Sul, 2007


Carlos Miguel Fernandes

Monday, December 03, 2007

Al Sur de Granada

Al Sur de Granada é uma loja de produtos gastronómicos da região, com uma zona de degustação de queijos, enchidos e vinhos. Há também azeite, vinagre, mel e conservas, entre tantas outras coisas de apreciável qualidade. Às quintas-feiras, o Fernando, o gerente da casa, está disponível para uma prova de vinhos, entre 19 e as 20 horas. Já tratei do assunto, e provámos quatro vinhos de Granada, provenientes das suas três áreas principais de produção, com explicação detalhada das diferentes características dos vinhos e regiões. Uma casa que nos transmite felicidade.


Carlos Miguel Fernandes

Monday, November 26, 2007

À Mesa do Mundo VI (Rias Baixas)

Voltei ao Rias Baixas, o restaurante galego de Granada que referi no texto anterior (que fica na Plaza de los Campos, para ser mais preciso). E voltei em boa hora, porque o marisco provado estava perfeito. Os camarões galegos (é aquilo que em Portugal se chama camarão de Espinho; mas falo do verdadeiro, e não daquela imitação com o tamanho de uma unha) são caros mas cumpriram o seu papel enquanto esperávamos pela zamburiñas, desta vez ainda mais frescas e saborosas, feitas à la plancha, a melhor forma de conservar o seu sabor forte e ligeiramente adocicado. Depois, vieram os berbigões no vapor, enormes, inchados, a estalar na boca e largar todo o seu sabor a mar num pranto generoso. Amêijoas de Carril? Não há?! Desilusão. Há algum tempo que não provo as enormes amêijoas galegas, cruas e temperadas apenas com uma gota de limão. Atiremo-nos então às outras que estão na “montra”, e que parecem ter bom tamanho; à galega, claro, pois à la marinera já tem molho redundante se o bicho for bom. E era bom, esplêndido, a encher a casca, e a competir com as recordações das Rias algarvias. Uma grande mariscada.


Não se está mal no Rias Baixas, que consegue apresentar a qualidade a que já nos habituaram os restaurantes galegos, mesmo quando se encontram fora da sua região. O apreciador de marisco que visitar Granada não sairá de lá desapontado. (Nota: ao fim-de-semana parece ter maior variedade de mariscos.)

Carlos Miguel Fernandes

Wednesday, November 14, 2007

Comer em Granada

Aos poucos vou compondo o meu roteiro de Granada. Começa-se pelas tapas, sempre pelas tapas, pois estamos na Andaluzia, e Granada é mestre em região de mestres do pequeno petisco. Depois vão-se juntado outros pontos de interesse. A marisqueira galega é uma instituição em qualquer cidade espanhola. Para já, confio naquela que encontrei na Calle Nava, perto do clássico Los Diamantes. Provaram-se — e aprovaram-se! — as zamburiñas, claro, porque quando elas estão no montra não as podemos deixar fugir.

Carlos Miguel Fernandes

Friday, November 09, 2007

Regresso (?)

Estive algum tempo ausente deste blogue, e diversos factores para isso contribuíram. Houve pouca vontade de cozinhar, uma exposição para erguer, e, mais recentemente, uma mudança de pouso para Granada, Espanha. Escrevo agora desde um sétimo andar com vista para a Serra Nevada. Não, não é a morada de residência, infelizmente, é apenas o local de trabalho. Mas o meu apartamento está muito bem localizado, no centro, a poucos metros de uma peixaria com marisco fresco (já vi amêijoas de Carril, caranguejos e canilhas, para além dos sempre presentes mexilhões, berbigões e diversos tipos de gambas) e de uma excelente mercearia onde posso comprar pimentos de Padron, tomate kumato, gengibre e ervas para tempero. A cozinha do apartamento é péssima, não permite grandes aventuras, mas talvez aguce o engenho. A jornada pela cozinha algarvia acabou por ser breve: dois ou três pratos, uma fotografia sem receita e uma ideia que ainda necessita de algum trabalho (batata-doce frita com ovas de sardinha). No próximo Verão voltarei ao tema. Agora vou dedicar-me à gastronomia granadina. Para já no tapeo, mais tarde talvez tente algumas habilidades em casa.

Carlos Miguel Fernandes

Wednesday, October 03, 2007

Atlas


Isto está longe da temática deste blogue, mas estão todos convidados para a inaguração, hoje, às 20 horas, na Rua dos Navegantes, 16, em Lisboa. E como Atlas passa também por terras islandesas, recordo crónicas antigas :



Carlos Miguel Fernandes

Sunday, September 30, 2007

Cozinha Algarvia — Ervilhas com Ovos



Para já fica só o "boneco", mas em breve falarei desta minha abordagem a mais um prato clássico da cozinha algarvia.

Carlos Miguel Fernandes

Saturday, September 15, 2007


Cervejas

O Francisco José Viegas prepara um guia com 500 cervejas e ainda está a aceitar sugestões. Aqui ficam as minhas (se já foram escolhidas, melhor ainda...), talvez o Francisco passe por aqui:
1 — A Jelen Pivo, da Sérvia, uma excelente pilsner criada nos Balcâs, que é, no entanto, suplantada pela...
2 — Niksicko, do Montenegro. A pilsner perfeita, que perde algum fulgor quando é servida em garrafa. Não é preciso visitar o mais recente Estado europeu para a provar. Em Belgrado encontra-se facilmente, e talvez
aqui se possam encomendar algumas.
3 — A Browarmia, na versão weiss e pilsner. Podemos bebê-la na
cervejaria com o mesmo nome, em Varsóvia. Alternativas? Não sei. Mas Varsóvia merece uma visita e este seria pretexto menor.
4 — A London Pride, uma das ale que me caiu no goto durante a recente visita a Londres.
5 — A Viking islandesa. Para eu perceber se é mesmo fraca ou se a minha apreciação foi apenas um reflexo da ligeira irritação que a Islândia me provocou.

Carlos Miguel Fernandes, Belgrado, 2003

Carlos Miguel Fernandes

Thursday, September 06, 2007

Cozinha Algarvia — Amêijoas da Ria de Alvor com Pão Algarvio

A ideia já me afagava o espírito há um par de meses. Era simples, pedia poucos ingredientes, e trinta minutos na cozinha bastariam para colocar no prato o que se ia formando na mente. Mas a simplicidade não implica desprezo pela matéria-prima, e, para esta receita, eu necessitava de dois itens que só no Sul consigo encontrar na plenitude dos seus atributos, pelo menos sem perder uma manhã de um lado para o outro com poucas garantias de arribar a casa de mãos cheias. Em Portimão consegui dar forma à cogitação.


As amêijoas vieram da ria de Alvor e brilho não lhes faltava. Continua a ser em Cacela-Velha que lhes encontro o grau supremo da formosura, pois todos os sentidos comem, mas eram magníficos estes bichos do Barlavento que me quase me alagavam a cozinha com as suas esguichadas. Abri quinze numa panela fechada sem qualquer gordura nem sal. Separei o miolo da concha e reservei o suco que ficou no fundo do tacho (o qual teria sido filtrado, se eu não estivesse em cozinha alheia, sem lhe conhecer os esconderijos). Cortei cinco paralelepípedos de excelente pão algarvio, com seis ou sete centímetros de comprimento, e torrei-os sem endurecer muito; o pão deve ficar crestado por fora e mole por dentro e a consistência do pão do Algarve, o melhor que se faz no país, facilita o processo. Ao lado já havia misturado a água largada pelas amêijoas com um pouco de azeite (uma parte de água para três de azeite). Adicionei ainda dois dentes de alho e um punhado de coentros, tudo muito bem picado. Não tinha almofariz e muito menos uma trituradora eléctrica, mas tentei, com uma colher, misturar os sabores. Barrei o pão com o azeite aromatizado, coloquei três amêijoas sobre cada tira, e reguei tudo com o resto do molho. (Nota: nem uma pitada de sal! O que vem com as amêijoas é mais do que suficiente.)

O resultado final esteve muito perto daquilo que desejava. Um prato comum com uma apresentação diferente, bom para o petisco descontraído, mas também adequado para um regime de degustação mais formal. Os sabores estavam bem vincados: a amêijoa suculenta, perfeita, e sem excesso de coentros; o pão a estalar, embebido num azeite que sabia a mar, com o toque agreste, conquanto essencial, do alho cru. Ah, temos ainda a açoteia, ingrediente incontornável, e que só encontrarão se rumarem para o extremo sul do país. O resto, ainda se pode disfarçar, com amêijoas do Sado ou pão “tipo alentejano”. Mas a açoteia algarvia e o cheiro a lodo não se imitam.


Carlos Miguel Fernandes

Monday, August 13, 2007

Azeitonas com Anchovas, Alcaparras e Pimento Vermelho

Alguém me sabe dizer o que se passa com as anchovas, aquelas de lata, muito salgadas? Recentemente gastei um fim-de-semana a procurá-las em várias mercearias e supermercados, sem sorte, quando antes as comprava facilmente na mercearia do bairro. E desde essa altura tenho espreitado as prateleiras sem as lobrigar. O fenómeno intrigou-me, mas acabei por esquecê-lo até que há poucos dias um familiar contou-me história igual e passada noutra cidade. Em Lisboa e em Setúbal parece que as anchovas de lata são bichos em vias de extinção. Espero que isto não tenha origem nas paranóias da ASAE ou da Comunidade Europeia (muito salgadas, pequenas, são vários os pecados que se podem imputar às anchovas) e que seja apenas o resultado de uma escassez temporária. Gostava de conseguir fazer as azeitonas com anchovas, alcaparras e pimento vermelho sem ter que rumar ao sul para comprar biqueirão e substituir o peixe de lata pelo pitéu algarvio (a receita ficava a ganhar, claro, mas não é muito prático).



Não é minha esta receita. Fui buscá-la à aceitunas verdes rellenas de pimiento y anchoa de José Andrés (do livro Los Fogones de José Andrés), à qual adicionei apenas a alcaparra. O processo é muito simples e resulta num fantástico aperitivo. Tira-se o caroço de meia dúzia de azeitonas grandes (prefiro as britadas, do Algarve), cortam-se ao meio, e num palito espeta-se metade da azeitona, uma alcaparra, meia anchova e um tira pequena de pimento vermelho. Fecha-se a “sanduíche” com a outra metade da azeitona. Num almofariz esmaga-se um alho e junta-se azeite (três colheres), vinagre (uma colher) e casca de laranja ralada (uma colher). Regam-se as azeitonas com este molho e deixa-se repousar durante trinta minutos. Antes de servir, pode-se polvilhar tudo com um pouco de flor de sal, mas com cuidado, pois as anchovas já são bastante salgadas.


A ideia de juntar uma alcaparra à criação de Andrés nasceu de uma variante da tapenade que inventei há um par de anos (são perigosas estas reivindicações, pois como se costuma dizer já não há nada de novo neste mundo; quem desconfiar da originalidade desta ideia pode atirar a primeira pedra, sem acanhamento). Variante simples, porque às azeitonas, alcaparras e azeite da tapenade canónica, apenas acrescentei as anchovas, bem desfeitas e misturadas com a pasta, que deixo mais grumosa do que a original. Uso-a para acompanhar carapaus alimados ou apenas para barrar em tostas.

Carlos Miguel Fernandes

Monday, July 30, 2007

Livros do Mundo IV - Comida Proibida

(O Na Cozinha associou-se ao No Mundo para responder a um desafio que circula pela blogosfera: falar de cinco livros que temos, neste momento, na mesa de cabeceira. Este blogue deu a seguinte contribuição:)

Estou a ler In the Devils Garden — A Sinful History of Forbidden Food, de Stewart Lee Allen, uma história de comidas proibidas, de alimentos que foram e são tabu e de outros que adquiriram estranhas e obscuras conotações. O autor percorre o mundo em busca de explicações para algumas das tradições alimentares dos homens e conta-nos histórias belíssimas e surpreendentes. Termino como comecei, com uma citação. Um monge grego, depois de explicar a Allen como se transformou a maçã no Fruto Proibido, remata a história:

The hermit laughed after he had explained. But the Bible never identifies the evil fruit, he said; it was the Roman Catholics who put the apple there. The Greek Church sees the forbidden fruit only as a symbol of pride and carnal desire. He pointed; these are only apples, my friend, which by God’s will are now divided into four pieces, one for each of us. He handed the wedges around with a smile.
Now eat.


O livro foi comprado numa excelente livraria de Seul, a Bandi & Lunis, de onde trouxe mais duas importantes obras para a biblioteca de gastronomia (uma sobre chá, outra sobre gastronomia holandesa), as quais acabarão, mais tarde ou mais cedo, por entrar neste Livros do Mundo. Acrescento ainda que In the Devils Garden nos oferece algumas receitas, e, como é tradição nesta secção, aqui fica uma, relacionada com o tema da maçã. Trata-se de Lamb's Wool, uma bebida cuja origem remonta ao paganismo celta, ao enigmático mundo dos druidas, e que ainda hoje é comsumida com estranhos rituais herdados de tempos muito antigos. Na lista de ingredientes encontramos a ale; e assim se faz a ligação com viagens e textos recentes.

6 apples

2 quarts hard cider, or a mix of cider and ale

Up to 1/4 cup honey or 1/2 cup brown sugar

1/8 teaspoon ground nutmeg

1/teaspoon cinnamon

1/4 teaspoon ground allspsice

Core the apples and roast at 400º F for 45 minutes, or until they are soft and beginning to burst. Put the cider/ale into a large pot and dissolve the honey or sugar in small increments, tasting for desired sweetness. Add spices. Simmer for about ten minutes. Lighly mash apples and add one to each mug and pour hot cider on top. Sprinkle with cinnamon. Serves six.

Carlos Miguel Fernandes




Wednesday, July 25, 2007

Pequenos Prazeres – Anchovas Secas (Coreia do Sul)

As anchovas secas são os tremoços das cervejarias e bares coreanos. São por vezes servidas num prato de aperitivos com diversas secções, nos quais podem aparecer outros tipos de peixe seco, produtos típicos da região que são facilmente encontrados em qualquer supermercado da Coreia do Sul. Em Busan, mesmo ao lado do famoso mercado, e no meio de inúmeros restaurantes de sabores marítimos, há uma zona com bancas dedicadas exclusivamente ao peixe e marisco seco. Já na Islândia, outro país de pesca e de pescadores, encontrei também uma forte tradição de consumo de peixe seco: no aeroporto de Reykjavik, o petisco é vendido com honras de símbolo nacional. Em Portugal também existe, pelo menos no Algarve, o hábito de secar o peixe. No entanto, é prática pouco visível, e se não fossem algarvios atentos com os quais tenho o prazer de partilhar mesas, talvez nunca tivesse ferrado o dente em peixe seco português. O que seria uma pena, porque aquilo que já me foi dado a provar não fica atrás do que tenho encontrado noutros lugares. Mas já desisti de tentar entender estes mistérios de Portugal.


Em Março deste ano trouxe anchovas secas da Coreia do Sul, obviamente, mas o estoque, do qual fazem parte outros bichos, já dava sinais de colapso quando embarquei para Londres. No Bloomsbury fui feliz, encontrei um supermercado coreano (não me recordo do endereço, mas sei que está numa rua perpendicular à Gower Street, no Bloomsbury), e de lá veio um saco de anchovas que deve satisfazer os desejos da casa durante algum tempo. (Em Portugal não sei se será possível encontrar este petisco coreano, mas deposito alguma esperança no Exotic Asia Market.) Com um punhado destes peixinhos que vieram de Inglaterra vou tentar fazer um dos muitos acompanhamentos que se podem encontrar nas coloridas mesas coreanas: anchovas secas e fritas. Só tive a felicidade de prová-las no final da primeira viagem que fiz à Coreia do Sul, num já distante ano de 2001. Foi no aeroporto, e vieram como acompanhamento de um polvo magnífico, guisado, que me fez esquecer a triste circunstância de estar ali à espera do embarque.

(Não parecem ter segredo algum, as anchovas secas e fritas. O mais difícil pode ser mesmo comprar as anchovas. Depois, é só envolvê-las com um pouco de óleo, e fritá-las enquanto se junta molho de soja, sal de sésamo e um pouco de açúcar.)

Carlos Miguel Fernandes

Tuesday, July 24, 2007

Cozinha Algarvia — Camarões em Molho de Tomate com Tiborna e Azeite de Orégãos Frescos

(Puxei este texto aqui para cima pois com ele resolvi participar no último desafio do hemc#13, sobre langostinos/camarões.)

Para a realização deste prato inspirei-me nas Sardinhas em Molho de Tomate e na Tiborna. No entanto, devo dizer que, para já, os Camarões em Molho de Tomate com Tiborna e Azeite de Orégãos Frescos é um prato falhado. Mas vamos começar pelas referências. Para conhecermos as Sardinhas em Molho de Tomate consultamos o livro Cozinha Tradicional do Algarve, da autoria de Conceição Amador, e editado pela Colares. Lá encontramos três receitas diferentes. Deixo aqui a que me parece mais canónica:

1 Kg de sardinhas pequenas
1 Kg de tomates bem maduros
1 cebola grande
1 pimento
2 dentes de alho
Sal q.b.
Salsa q.b.
Azeite q.b.
Vinho branco q.b.

Tire as escamas e as tripas às sardinhas. Lave-as bem e salpique-as com sal.
À parte, comece por aquecer o azeite num tacho, junte o alho e a cebola picados e deixe alourar. Junte o tomate cortado em cubinhos e deixe fritar. Junte depois o pimento em fatias finas, um pouco de vinho branco.
Assim que ferve, mergulhe neste molho as sardinhas e deixe cozer só mais 5 minutos.
Polvilhe com salsa e está pronto a servir.Pode acompanhar com batata frita, batata cozida ou arroz branco.


A Tiborna que se fez para este prato foi inspirada numa interessante variação da receita mais tradicional, encontrada no livro Festa da Gastronomia e das Receitas Típicas das Aldeias do Algarve, editado pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve. A receita foi recolhida em Monchique e reza assim (o sumo de laranja foi o pormenor que me chamou a atenção):

Autores: Andreza da Conceição (já falecida), José António da Conceição e Ana Maria do Carmo (Restaurante A Charrete)
Ingredientes (para 4 pessoas): 1 pão caseiro quente, 4 dentes de alho pisados, 2 dl de azeite da serra, 1 colher de sal grosso, sumo de meia laranja.Preparação: Num prato raso colocam-se os alhos pisados, o azeite, o sumo de laranja e o sal. Com a mão parte-se o pão ainda quente e molha-se no preparado.


O que se fez, e o que falhou? Como título indica, substituíram-se as sardinhas pelos camarões. Os bichos, temperados com sal e pimenta e fritos em óleo de amendoim, até compuseram o fragmento mais saboroso do conjunto. Mas agora parece-me que este ímpeto burguês não faz muito sentido, e na próxima tentativa voltarei a dar um carácter mais popular à receita, fazendo regressar as sardinhas ao prato. O molho de tomate foi feito com os ingredientes indicados na receita, aos quais se acrescentaram três ou quatro folhas de hortelã. Triturou-se tudo, e aqueceu-se o molho resultante na altura de servir. Faltou o aroma da hortelã, tal como esteve desaparecido o fresco perfume dos orégãos no azeite do mesmo. Quando voltar a este prato, já sei que a dose de hortelã deve ser reforçada, na confecção do molho, e também na apresentação final, com algumas folhas inteiras. O azeite de orégãos frescos vai ficar na gaveta. Prefiro polvilhar o prato com algumas folhas, dando-lhe assim a cor e o cheiro desejados. Era nas ervas frescas usadas na cozinha algarvia que a ideia deste prato se sustentava. Abdicou-se dos coentros e da salsa, sabores já muito batidos, e ancorou-se o prato na hortelã e nos orégãos. Como estes não foram bem aplicados, o edifício ruiu. Salvaram-se os camarões, e o molho de tomate, trave mestra da cozinha mediterrânica e sabor sempre irresistível.



A confecção da Tiborna também não correu bem. Foi pequeno, mas fatal, o erro. Para reduzir um pouco o sumo laranja, levei-o ao lume já misturado com o azeite e o alho. O azeite “cozeu” e ficou com um sabor demasiadamente forte. Nada que não se resolva fazendo a redução do sumo de laranja isolado, o qual depois se despeja sobre uma fatia de pão já molhado com o azeite. Uns grão de flor de sal dão o toque final.



Deixaram-se comer, estes Camarões com Molho de Tomate. Mas, pelo menos na forma presente, não são matéria digna de arquivo. As recriações dos Carapaus Alimados e das Ervilhas com Ovos Escalfados, mais dois clássicos algarvios, já são outra conversa. Em breve, neste blogue.

Carlos Miguel Fernandes

Tuesday, July 17, 2007

Comer em Londres




As imagens não são tão apelativas como aquelas que ilustraram como se come em Busan e em Seul, mas nesta última viagem, não sei por que razão, não fui com muita disposição para esquadrinhar a cidade em busca dos melhores lugares para comer. Mas atenção!, que isto não reforce o mito de que em Londres, e na Ilhas Britânicas em geral, se come mal. Há excelentes restaurantes em Londres. Alguns, caríssimos, estão certamente entre os melhores do mundo, mas há também pequenas casas no centro da cidade que servem excelentes refeições a preços mais módicos. E começo agora a lamentar não ter experimentado o restaurante de peixe que encontrei no Bloomsbury, o North Sea Fish Restaurant. Infelizmente, estava muito perto do meu hotel, e nunca me cruzei com ele numa hora adequada para refeições. Pequeno, acolhedor, simples, deixava transparecer alguma qualidade. Fica para a próxima.

Carlos Miguel Fernandes

Tuesday, July 03, 2007

Livros do Mundo III — “Literatura” de Aeroporto

Os aeroportos são a face negra da viagem. Tempos de espera insuportáveis, ar irrespirável, e agora a paranóia securitária. São estes os “argumentos” dos aeroportos, e tudo piora quando neles se entra para embarcar na inevitável viagem de regresso. Alguns atenuam-nos o sofrimento com as charcutarias gourmet. Os queijos do Schiphol (Amsterdão) e o fígado de ganso do Ferihegy (Budapeste) aligeiram a angústia. Mas é em Espanha que enfrentamos a perdição, quando nos vemos rodeados por vinhos, enchidos e queijos de qualidade suprema. Os aeroportos de Madrid, Barcelona e Alicante têm lojas muito recomendáveis, e suspeito que o mesmo se passa noutras regiões do país. É nesses recantos de pecado que podemos encontrar o Guía de los Quesos de España e o Guía de los Embutidos de España. Um pequeno cabaz de compras garante-nos um dos livrinhos, mas estes também podem ser adquiridos a solo por poucos euros.





















Estes Guías não são livros fantásticos mas têm alguma informação útil. E quem já passeou por Espanha, pela imensa e bela Espanha, sabe como é difícil acompanhar o desfile de queijos, enchidos e fumados que se desenrola descaradamente em frente aos nossos gulosos olhos. Basta olhar para a Catalunha (terra da butifarra e do fuet, parentes do magnífico catalão de Barrancos) para vermos um mundo de enchidos; e as tortas extremenas, o cabrales asturiano e a tetilla galega são suficientes para colocar Espanha na primeira divisão dos queijos. Mas há mais, muito mais, e um guia, por muito singelo que seja, não é auxiliar que se deva desprezar. Por isso, caros leitores, se passarem por algum aeroporto espanhol, entrem numa loja, agarrem um manchego bem curado, um bom bellota, uma cecina (presunto de vaca) e um naco de moxama de atum, e peçam na caixa o livro que vos é devido. E apesar destes guias não serem livros de receitas, algumas coisas do género podem ser encontradas por lá. Tal como este el ahumado en casa, que vos deixo aqui, cumprindo o costume desta secção Livros do Mundo.

Se puede dar un sabor ahumado a la carne fresca o al salmón, utilizando un recurso casero. Para ello se necesitan 600 g de sal gruesa de mar, 400 g de azúcar en polvo, 60 g de grano de pimienta molida y eneldo o hinojo [endro] o media cucharada de un aperitivo anisado en su defecto: todos estos ingredientes se mezclarán en una ensaladera. La carne fileteada se pincha, casi atravesándola, por ambos os lados. Se cubre el fondo de una bandeja con la mezcla; se colocan los filetes de carne sobre la capa, y se vierte el resto de la mezcla hasta que la carne se quede totalmente sumergida; se cubre con papel film y se mete en el frigorífico durante 48 horas. Después, se enjuaga abundantemente la carne, y se la deja seis horas más en un recipiente grande con agua fresca para que se desale. Por último, se seca bien con papel absorbente y se mete de nuevo en el frigorífico, pero destapada, durante veinticuatro horas más. El resultado es sorprendente.

A receita foi testada com salmão. Surpreendente não é adjectivo que usasse. Mas é muito bom, e dá-nos ganas de levantar o dedo e pedir una caña más, por favor.

Carlos Miguel Fernandes

Thursday, June 28, 2007

À Mesa do Mundo VI – Luís Suspiro na Quinta de Santo António

Conheci a arte de Luís Suspiro na Ereira, no velho Condestável, numa refeição extraordinária e enriquecida por conversas gastronómicas em torno dos boletus e dos salmonetes de Setúbal. Ainda não visitei a sua mais recente casa, Na Ordem..., mas tive o prazer de reencontrar a arte do mestre Suspiro há poucos dias, num casamento. O N., homem de bom gosto, foi amigo dos seus amigos, e contratou um dos melhores cozinheiros portugueses para animar a boda que se realizou na quinta da família, perto do Cartaxo. Ficar-lhe-emos eternamente gratos, pois a experiência roçou, em alguns momentos, o sublime, e Suspiro acabou por ser a estrela do casamento (a noiva que me perdoe). E não estou a fazer uma avaliação dentro dos baixos padrões da “comida de casamento”.


Durante um par de horas, e antes de nos sentarmos à mesa, fomos brindados com uma longa viagem pela gastronomia portuguesa, feita de engenho, criatividade e primor técnico. Como devem calcular, não tirei notas, para além do registo visual. Mas tão cedo não me vou esquecer de alguns sabores que me passaram pela boca, tal como a açorda de ovas, a açorda de tomate, o bacalhau à brás, a feijoada e o creme de abóbora. Os enchidos eram perfeitos (a morcela com compota de ameixa que se vê ali em baixo numas colheres brancas é indescritível) e estavam muito bem acompanhadas pelo pão confeccionado pelo próprio Luís Suspiro. Circularam também diversas chamuças e empadinhas, todas elas surpreendentes e deliciosas. E aquele crepe que se vê numa das imagens, por cima do creme de abóbora, quase nos levava às lágrimas.
















À mesa a festa foi mais modesta e o chefe arriscou menos. Compreende-se, é necessário servir centena e meia de convidados, e não há milagres. E é preciso agradar a todos. Mesmo assim, a refeição deixou bem lá em baixo os tais padrões da “comida de casamento”. Começámos com uma Perdiz de Escabeche com Misto de Salada alface Frisada e Frutos Secos, muito boa. Depois, veio o melhor, os Lombos de Bacalhau com Batatinhas a Murro em Versão Lagareira, Miga Crocante de Espinafres com Broa de Milho, Frutos Secos e Molho de Queijo de Serpa. Foi, provavelmente, o melhor bacalhau que comi em Portugal. (O seu sabor, textura e a forma como se abria em lascas deu a ideia de que poderia ter sido confitado, mas não posso garantir que tenha sido esse o tratamento.) Para limpar o palato tivemos um Sorvete de Maçã Verde com Molho de Poejo e Maracujá Roxo.
As Bochechas de Porco Preto de Barrancos em Vinho Tinto Acompanhadas por Castanhas com Erva Doce e Espargos Verdes Salteados em Azeite Virgem de Ervas, resultaram muito bem, com a carne a desfazer-se ao contacto com garfo. Só as castanhas acusaram as características do jantar, tendo chegado à mesa um pouco secas. No entanto, o sabor dado pela erva doce é digno de registo. Para sobremesa, Suspiro ofereceu-nos Frutos Silvestres com Pastelinho de Tentúgal em Dois Dhocolates e Sorvete de Manga. Os frutos silvestres estavam demasiadamente gelados, a fazer doer os dentes, o que retirou algum do prazer que o prato nos poderia ter dado, mesmo depois de várias horas a experimentar sabores. Mas a avaliação geral do jantar é elevada. Já em relação às entradas, a nota máxima é a mais justa. O Luís continua em forma.

Carlos Miguel Fernandes

Saturday, June 09, 2007

Notas de Prova

A combinação do azeite de trufas com a moxama de atum resultou muito bem. Dois sabores fortes em disputa acesa mas leal, o mar e a terra num equilíbrio crítico que foi fonte de intenso prazer. Como já disse aqui em baixo, a moxama veio de Olhão e o azeite foi comprado em Berlim, mas quem vive em Lisboa não precisa de ir tão longe. Uma visita à Rua do Arsenal, ao Corte Inglês e à Deli Delux devem resolver o problema.

Experimentou-se também o trüffel öl com Feta. Sem sal nem pimenta, apenas alguns quadradinhos do queijo grego de cabra e ovelha mergulhados no azeite. Perfeito! (Um queijo de leite de cabra bem curado também não deve ficar nada mal.)

Carlos Miguel Fernandes

Tuesday, June 05, 2007

Berlim

Carlos Miguel Fernandes, Berlim, Março de 2005

Antes de entrar na cozinha algarvia gostava de deixar aqui algumas notas sobre os sabores de Berlim, cidade que voltei a visitar no último fim-de-semana, numa viagem dolorosamente curta. Berlim tem incontáveis argumentos para seduzir o viajante mas a comida não é o mais forte (até porque os outros são imbatíveis). A gastronomia do Europa Central não pode rivalizar com a cozinha do sul, não tem o solo e o mar das costas mediterrânicas, nem a luz que convida à indolência. É verdade que hoje, em qualquer capital do mundo, se encontram óptimos restaurantes de cozinha criativa, produtos frescos e paleta extensa. Berlim não será excepção, mas comparo aqui a comida tradicional, e nesse registo a oferta diminui quando se sobe pela Europa acima. Mas a cidade tem bons argumentos gastronómicos, e o saldo acaba sempre por ser positivo.

Chegados a Berlim, deparamo-nos com duas hipóteses quando abordamos os restaurantes de nível médio. Ou divagamos pelas cozinhas do mundo, aproveitando a extraordinária oferta da capital berlinense, da qual se destacam as várias gastronomias do extremo-oriente, ou ficamo-nos pela comida de cervejaria, sem rasgos de génio, mas honesta e feita quase sempre com produtos de boa qualidade. Desta vez dirigimo-nos apenas ao segundo grupo e, como aconteceu nas visitas anteriores, não levámos mais do que a experiência adquirida. Em Berlim, sempre procurámos a comida pelo “cheiro”, sem guias ou dicas de terceiros (as ligações às páginas dos diversos lugares que descrevemos em baixo foram obtidas a posteriori, excepto no que se refere àqueles que já conheciamos de outras viagens).

A tarefa é fácil. Basta entrar numa das muitas cervejaria da cidade, e no menu lá estarão a carne de porco fumada, os arenques, as salsichas e o celebrado eisbein, o joelho de porco cozido ou assado no forno. Posso sugerir alguns lugares. A cervejaria Rocco, mesmo por baixo da paragem Hackescher Markt do S-Bahn, tem um ambiente imperial assente em madeira escura e pedra, e oferece porco gelatinado, porco fumado e arenque, entre outros pratos regionais misturados com uma menos interessante lista de pizas e pastas. No bairro de São Nicolau temos a Georgbrau, casa onde se fabrica uma cerveja excepcional da qual falarei mais à frente, e de cuja a cozinha, aberta para a sala interior, saem eisbein a um ritmo estonteante. Mas para comer o eisbein tínhamos a Standige Vertretung! O joelho de porco não se destaca nessa cervejaria, mas há tradições que fazemos questão de manter; a Standige Vertretung é um espaço onde gostamos de passar algumas horas quando visitamos Berlim. Para terminar, devo referir que o acompanhamento das carnes nas cervejaria berlinenses não varia muito. O duo chucrute/batata domina, mas surpreende a qualidade da batata, cozida, gratinada ou assada no forno, mas raramente frita.

Se a comida das cervejarias de Berlim não espanta nem desilude, o mesmo não se pode dizer daquilo que dá nome e fama às casas: a cerveja! Para quem gosta de cerveja, uma visita a Berlim torna-se ainda mais recomendável. Desde as pilsner locais até às weisenbier (cerveja de trigo) que vêm do sul da Alemanha, a colecção é quase insuperável. A Warsteiner, a Jever, a Berliner Kindl ou a Kolsch são pilsner de boa qualidade e encontram-se em todos os cantos de Berlim. As famosas Paulaner e Franciskaner são weisenbier que aparecem com regularidade, tal como a Weihenstephan, cerveja que bebi pela primeira em Berlim, já lá vão mais de dois anos. Mas é nas cervejarias que encontramos as produções mais interessantes, cervejas que raramente saem das quatro paredes da casa mas que nos animam com sabores ricos e muito particulares. No último fim-de-semana tive o prazer de provar pela primeira vez as duas cervejas fabricadas na Georgbrau do bairro São Nicolau. A pilsner não decepcionou, mostrando aquela opacidade que distingue as pilsner de fabrico caseiro das de distribuição massiva. Mas foi a dunkel que nos fascinou, com o seu surpreendente cheiro e sabor a caramelo amargo (!). Entretanto, na cervejaria Mommseneck, na zona da Potsdamer Platz, já havíamos provado no dia anterior a Aecht Schlenkeria, a qual nos levou ao céu com seu travo a peixe fumado. Caramelo amargo e peixe fumado!? Isto parece conversa de enólogo de terceira categoria, mas logo que cheguei a Lisboa fui consultar o livro 99 cevejas+1 de Francisco José Viegas, esperando lá encontrar a Aecht. E lá estava ela, logo no início do inventário. Passemos a palavra ao Francisco José Viegas: Portanto, trata-se de pôr as coisas em copos limpos: “cerveja fumada”, uma variante bávara, produzida em Bamberg, onde fica a histórica Schelenkerla, uma cervejaria notável. Afinal eu não estava louco nem possuído por algum espírito pedante. Havia mesmo um travo a fumado naquela cerveja negra. (No livro, a Aecht é referida como tendo 6,5% de álcool, mas a minha garrafa só tinha 5,1%; gralha?)














Termino esta curta digressão com uma referência à Barrique, uma discreta mercearia moderna (ou gourmet, como agora se diz) que encontrei no número 27c da Reinhardtstrasse, uma rua perpendicular à Friedrichstrasse, já perto da Oranienburger Tor. A especialidade da casa são os sabores líquidos. Para além dos vinhos engarrafados, tem também azeite, vinagre, licores e aguardentes em barricas de vidro a partir das quais o simpático dono enche garrafinhas transparentes de 20 cl, nas quais depois escreve o nome do néctar. Há também algumas massas de boa qualidade, especiarias vendidas a peso e acessórios para o vinho, mas é na diversidade do espírito e do azeite que a casa parece dar cartas. De lá trouxemos um azeite aromatizado com trufas e uma selecção da imensa bancada de licores e aguardentes que dominava uma das paredes da Barrique. O azeite já está reservado para uma moxama de atum que veio do Algarve. Vamos ver como se aguenta no confronto. Para as ovas de polvo secas a Aecht Schlenkeria seria, provavelmente, a cerveja ideal. Onde poderemos encontrá-la?

A Barrique

Carlos Miguel Fernandes

Wednesday, May 30, 2007

Ovas de Polvo Secas

Esta beleza que se vê aqui na imagem chegou há poucos dias vinda do Algarve, acompanhada por mais sete espécimens. São ovas de polvo secas. É um dos melhores petiscos do mundo, mas em Portugal poucos o conhecem, muito provavelmente devido ao desapego do resto do país em relação à cozinha algarvia. Vou tentar, desta humilde posição, dar outra fama àquela que, como já referi neste espaço, julgo ser a gastronomia regional mais interessante de Portugal. No próximo Verão os meus esforços culinários dirigir-se-ão no sentido de recriar os pratos do Algarve, dar-lhes roupas alternativas, e descobrir novas combinações de sabores. É tarefa árdua para o carácter amador da minha cozinha e um desejo que pode até ser confundido com uma certa arrogância. Mas é uma ambição que nasce de um genuíno interesse na gastronomia algarvia. Comecei o exercício no passado fim-de-semana com uns camarões em molho de tomate e pão com azeite, alho e sumo de laranja, prato inspirado nas sardinhas em molho de tomate e na tiborna. A próxima entrada deste blogue descreverá o processo (que não atingiu ainda os objectivos pretendidos).
Para já sugiro uma visita a Olhão e uma busca incessante pelas ovas de polvo secas. Se a demanda se revelar custosa, perguntem aos peixeiros pelos produtos que por vezes escondem debaixo do balcão (é para onde esta iguaria está muitas vezes remetida, talvez pelos ditadorzinhos de Bruxelas). Quando finalmente estiverem com uma ova nas mãos, tostem-na no carvão, ou até mesmo no bico de um fogão. Raspem a cinza, cortem a ova em fatias finas e acompanhem com uma cerveja bem gelada. Sem invenções.

Carlos Miguel Fernandes

Tuesday, May 22, 2007

À Mesa do Mundo - V (Ainda o Altair)

Nunca cheguei a falar do regresso ao Altair de Mérida, mas tal não se deveu a alguma desilusão com o restaurante que já havia visitado em 2003. Nada disso! A refeição foi soberba, e deixou marcas ainda mais agradáveis do que a primeira visita. Mas algo correu mal com as fotografias, e o bloco de notas foi fechado a meio do jantar, pois estava-se ali para gozar os sofisticados sabores extremeños do Altair, e não para trabalhar. Fiquei sem material para uma crónica decente, mas ainda recordo com grande prazer o delicioso ovo escalfado com espargos e leite de cabra fermentado, um arroz negro perfeito, o bacalhau com trufas, e o coelho que se apresentou num ponto de assadura prodigioso. Muito mais haveria para dizer, se as notas estivessem completas. A descrição de um “menu degustação” com a extensão e diversidade daquele que nos é oferecido pelo Altair não pode ser abandonada aos humores da memória.

Carlos Miguel Fernandes, Mérida

Como a dimensão do menu não facilitava a escolha do vinho (para além isso, nem sabíamos metade do ali vinha!), optou-se pelo Martin Codax de 2005. Não se esperavam combinações gloriosas com a comida, mas pelo menos não estragou nenhum prato. Com as sobremesas foi-nos oferecido um Pedro Ximenez que se antecipou ao Tokaj que nos preparávamos para pedir (sim, havia Tokaj, vinho húngaro, na lista). Não veio daí nenhum mal ao remate da refeição. O Pedro Ximenez, como se esperava, cumpriu bem a função, e foi a companhia ideal para a última etapa de mais um inesquecível jantar no Altair.

Carlos Miguel Fernandes

Friday, May 04, 2007

Livros do Mundo II (Cozinha Algarvia)

Francisco Piedade — Hoje não resisto a ler uma parte de um texto delicioso sobre um velho pescador de Ferragudo.
Renato Costa — Estou de acordo. Avança!
FP — O texto foi escrito em 1921, já lá vão uns anitos. Começa assim: ”pois nesta aldeia jantei ontem, às horas calmas do sol-posto, com Robalo, um velho pescador. Uma sopa de sardinha, dourados salmonetes, vinho velho de Alvor, uvas brancas e figos inchários, dos que têm pele negra e polpa rosada, doces como o mel. Depois, entre uma velha e aromática medronheira da serra e alguns cigarros de onça, ali estivemos a recordar o passado, os que tinham morrido, os que se tinham ausentado para a Terra Nova e, por fim, aquela velha história dos piratas em que robalo, o pescador, conta coisas dos tempos em que fizera contrabando de açúcar e tabaco, entre Marrocos e Olhão."

O livro chama-se Bocaboca — Segredos da Gastronomia Algarvia e dá-nos as transcrições das conversas entre Francisco Piedade e Renato Costa transmitidas na Antena 1, no programa Portugal Directo. O diálogo estabelece-se sob o mote da cozinha algarvia, a qual é, na minha humilde opinião, a mais interessante e diversificada do país. Infelizmente é também a mais ignorada, mas o livro Bocaboca, no qual tropecei há cerca de um ano numa livraria de Lisboa, pode servir de intróito aos encantadores petiscos do sul. Nas conversas, seccionadas por temas, toca-se nas raízes e nas influências árabe e romana, fala-se do peso do peixe e da carne na dieta algarvia, e abordam-se algumas especialidades da zona, quase desconhecidas no resto do país, como o xerém, a moxama de atum, os carapaus alimados e o extraordinário polvo de Santa Luzia. O medronho, como não podia deixar de ser, toca várias conversas, e o gaspacho, esse milagre alimentar tão bem acarinhado em Espanha e tão esquecido por cá, tem honras de conversa própria.
Bocaboca lê-se de um fôlego, e talvez mostre, a quem lhe passar os olhos por cima, por que razão defendo a gastronomia algarvia como a mais promissora base para uma nova cozinha, baseada nos saberes e sabores regionais, mas completada com novas técnicas e combinações inovadoras de texturas e paladares, tal como desde há uns anos se tem feito no país vizinho com resultados deslumbrantes. Será que vão ser os cozinheiros espanhóis os primeiros a (re)descobrir a cozinha algarvia? (Não quero ser injusto com Luís Suspiro, por isso não deixar de referir que o mestre do Condestável e do Na Ordem com... foi buscar ao Algarve a inspiração para algumas das suas melhores obras.)
No final de cada capítulo de Bocaboca os autores oferecem-nos uma ou mais receitas relacionadas com a conversa anterior. Aqui ficam as instruções da Estupeta de Atum de Tavira:

Ripe à mão 750 gramas de atum salgado e passe três vezes por água fria para extrair bem o seu sal.
Esprema muito bem e prove para se certificar se já perdeu o sal.
Deite o atum numa taça e adicione duas cebolas médias picadas, dois pimentos verdes e meio quilo de tomates pouco maduros cortados aos cubos.
Tempere com um bom azeite e vinagre.
Decore com azeitonas pretas.

Simples, não é?

Carlos Miguel Fernandes

Thursday, April 26, 2007

Reypenaer

Chama-se Reypenaer, é um Gouda com dois anos de maturação e um dos meus queijos de eleição. O Gouda é um queijo holandês produzido com leite de vaca e carrega já uma longa história que remonta ao século VI. A partir do século XII começou a ser exportado e hoje é um queijo com uma respeitável popularidade, e que se encontra espalhado por todo o mundo. Quando jovem, é firme mas flexível. O envelhecimento dá-lhe uma consistência mais dura, alguma granulação e cristais que fazem lembrar o parmesão. Com doze a dezoito meses de envelhecimento é também utilizado para cozinhar, ralado, mas o Reypenaer V.S.O.P. de dois anos não pode ser usado com tanta leviandade. Estamos perante uma das mais preciosas jóias da cultura queijeira do mundo, um produto que já franqueou as portas da exigente cozinha do El Bulli de Ferran Adrià. Cortado em fatias muito finas, entra na boca discretamente, para depois eclodir com num travo persistente a frutos secos e noz-moscada, libertando também uma ligeira sugestão de fumeiro. Compro-o sempre que passo pelo aeroporto Schiphol de Amsterdão, mas como tenho a felicidade de fazer parte de uma família que agora se estende até à Holanda, sou brindado, com alguma regularidade, com uma cuidadosa selecção de queijos holandeses. E os queijos holandeses, caros leitores, são um caso sério. Não é só este Reypenaer que deslumbra.


Carlos Miguel Fernandes

Monday, April 09, 2007

Brincadeiras de Primavera

(Com este tempo instável que nos tem visitado só nos resta mesmo brincar às Primaveras.) Recentemente, e para acompanhar o primeiro gaspacho do ano, reduziram-se as doses ao mínimo, e compôs-se um prato de amostras mediterrânicas. Para além do gaspacho, decorado com um camarão, fez-se ainda um ovo de codorniz escalfado e temperado com flor de sal, pimenta branca e paprika, uma pequena fatia de pão com tomate e encimado por uma mistura de pimento vermelho e coentros temperada com vinagreta, e umas azeitonas baseadas numa receita de Jose Andres, com pimento vermelho, anchova e alcaparras, tudo banhado por uma vinagreta com alho e casca de laranja.


Uma segunda tentativa, neste último fim-de-semana, melhorou um pouco a coisa, acrescentando-lhe um copinho com queijo de cabra submergido em azeite com grãos de pimenta e tomilho, e substituindo o pão do pimento picado por uma tosta de massa com cebolinho feita em casa. O gaspacho, para poder ostentar o nome sem vergonha, terá que esperar pelo verão. E, mesmo assim, lá terei que esquadrinhar Lisboa em busca dos tomates certos, ou então fazer uma visita ao Algarve.

Carlos Miguel Fernandes

Monday, April 02, 2007

Comer em Busan II
Os portos marcam as cidades, cravam-lhes as unhas e não costumam deixar espaço para outras identidades. O que distingue Busan de Seul é a imensa linha de água onde descansam os barcos, de recorte fractal e pontuada por ilhotas, e cuja influência se prolonga pela cidade adentro, transformando-a em lugar de fronteira, e oferecendo-lhe um cosmopolitismo que não é feito de taxistas indianos nem de estudantes do “erasmus”, mas de marinheiros russos, turistas japoneses, armazéns chineses e trabalhadores do sudeste asiático. A Rua Texas, assim designada por ser um lugar pouco aberto às coisas da lei e da ordem (mas, pelo menos durante o dia, a visão é um pouco exagerada), alberga o comércio chinês e os prostíbulos russos. Russian vodka!?, sugerem mulheres louras à porta de lugares esconsos que despejam luzes arroxeadas e deixam entrever texturas de cetim barato e gasto por corpos que desejam desaparecer na penumbra. Não ver e não ser visto; parece ser este o lema dos pardieiros das cidades portuárias, lugares onde os perseguidos pela lei ou pelo passado desejam perder-se, perder o rasto do mundo que terminou no acto do desembarque. Busan, mesmo fazendo fronteira apenas com o mar, não escapa a um certo ar de Tijuana oriental. Mas a insegurança e o assédio que se observam noutros lugares fronteiriços não existem em Busan. Em Busan vive-se em paz.

A atracção principal da cidade encontra-se a sul, junto ao mar e um pouco afastada do centro, conquanto a zona esteja longe de ser pouco movimentada. O mercado de Jagalchi é a alma duma enorme urbe com cinco milhões de habitantes que cintila de actividade virada para o Pacífico, para um mar riquíssimo que a abastece com o melhor peixe e marisco que qualquer faina pode encontrar. O espectáculo começa no piso térreo do edifício que abriga o mercado, e prolonga-se pelas ruas adjacentes, onde as enguias se mexem furiosamente em tinas de plástico, os bivalves esguicham água e os polvos se passeiam por entre os pés dos transeuntes até que o seus donos os ponham na ordem. A oriente, o mercado de peixe seco continua a festa marítima, enquanto a norte o mercado de Gukje prolonga uma intensa zona de comércio, a qual termina mais acima ainda, na simpática rua dos alfarrabistas, que já nos recebe com serenidade.

No edifício do mercado parecem estar os animais mais nobres. Vivos, sempre vivos! Amêijoas, vieiras, búzios, caranguejos, polvos, pregados, robalos, enguias, e até pequenos tubarões; todos são escolhidos pelo cliente enquanto ainda se movem numa água em constante renovação que vai produzindo um revigorante som de cascata. Água, chão, paredes, tudo apresenta uma limpeza irrepreensível, soltando um cheiro puro a mar que nos invade os sentidos, desperta a gula e impele para o segundo andar do mercado. Foi aí que, à mesa, e sentados no chão em pose coreana, registámos as imagens dos caranguejos que podem ser vistas na entrada anterior. Mas o melhor ainda estava para vir, um enorme caranguejo-real vermelho, que bateu nos 4,2 Kg quando foi pesado no andar de baixo; tem razão quem defende que a sua carne é melhor do que a da lagosta! A este monstro juntou-se um caranguejo de menor dimensão (ver a quarta imagem da entrada anterior), mas de sabor igualmente intenso e agradável, e umas ostras fresquíssimas, cruas, e que foram, sem dúvida, das melhores que já comi. Ao lado, os camarões, os mexilhões, os búzios, o sashimi e outros petiscos são acompanhamento habitual nas mesas do Jagalchi; um couvert de luxo que acaba por passar despercebido no meio de bichos como o caranguejo-real. Tudo se conjugou numa mariscada inesquecível, um jantar sem grandes malabarismos culinários mas cuja matéria-prima, perfeita e bem tratada, não deixará tão cedo cair no esquecimento, fazendo-o ombrear com recordações muito mais sofisticadas. (Alguns dias antes já haviam sido provados os pequenos caranguejos que também abundam no mercado, uma espécie de navalheira mais gorda e de casca mais áspera, e que provou ser também material de qualidade suprema. E da cozedura destes caranguejos e dos outros nada há a apontar. Não se pedia nem mais nem menos minutos; aqueles senhores sabem o que fazem.)

O exterior do mercado também ferve de agitação culinária. A primeira fotografia da entrada anterior foi apanhada numa das muitas tascas que rodeiam o mercado de Jagalchi, a poucos metros da água. Aí, a especialidade são as enguias pequenas, esfoladas e cortadas a pedido, chegando às brasas do centro da mesa em pequenos troços que ainda se debatem em espasmos musculares post-mortem. Mas as vieiras, caros leitores, são um caso sério! Nem da Galiza trouxe tais recordações da concha de Santiago.
A segunda imagem foi obtida no centro da cidade, longe do mar, numa marisqueira onde jantei duas vezes (para além do segundo piso do mercado, foi o único restaurante que repeti na viagem à Coreia do Sul). O marisco, de qualidade irrepreensível, chegava vivo à mesa, onde era depois cozinhado na chapa, ao natural ou com um molho de cebola e pimentão. A concha que se vê na fotografia foi uma das grandes surpresas gastronómicas da viagem. Quando esperava um bicho rijo e desenxabido (as conchas grandes, tal como os búzios, não costumam ser muito generosas no sabor), encontrei com uma textura suave e um sabor rico.

Não houve tempo para muitas aventuras. Recordo ainda, com alguma saudade, uma simples mas deliciosa sopa de peixe que comi num restaurante do centro da cidade, e o peixe (primorosamente) grelhado com qual me deleitei em Okpo, na ilha Geoje, a quarenta e cinco minutos de Busan. Este, meia hora antes de chegar à mesa, ainda se passeava no aquário do restaurante arrastando o anzol com o qual havia sido capturado. Na mesa portou-se com galhardia, pois na grelha estava alguém que sabia trabalhar. A pele estava bem tostada, sem apresentar sinais de secura, e a carne junto à espinha estava quase, quase, crua, condição limite que só um peixe muito fresco aguenta. O tempo aquecera, e pela primeira o casaco e a camisola podiam descansar na cadeira da esplanada. Nem o som metálico e periódico que vinha do outro lado da baía, do estaleiro, conseguiu perturbar uma tarde perfeita, umas horas de descanso que o corpo já pedia depois de muitos quilómetros percorridos através das ruas de duas cidades desmesuradamente grandes. Foi feita de coisas simples, esta incursão aos prazeres de Busan.

Carlos Miguel Fernandes

Tuesday, March 27, 2007

Comer em Busan






Carlos Miguel Fernandes