Wednesday, December 06, 2006

À Mesa do Mundo - II (Saegreifinn)

É costume dizer-se que as cidades portuárias partilham características comuns. Fala-se do ambiente de encruzilhada, do convívio canalha, dos marinheiros e das suas conversas épicas e turvas de álcool, pautadas pelas dames qui leur donnent leur joli corps, as quais vão entretendo os Ulisses invertidos com nostalgia do próximo porto entre uma peleja e um copo de rum. Mas em Reykjavik é diferente. No porto velho de Reykjavik não há des marins qui boivent, nem acordeões, nem gestos graves. A maresia está presente, nos cais há algum ferro retorcido e ferrugento, mas envolve-nos uma aura asséptica, que na verdade se estende por toda a cidade, mas que se estranha ainda mais no porto, dado os hábitos alimentares das gentes do mar islandês, pouco dadas a modernidades hipócritas. Os marinheiros islandeses não se coíbem de afinfar um golfinho ou uma baleia, animais de pelúcia da sensibilidade urbana, e é no porto velho que o gastrónomo curioso pode encontrar tais regalos. E se o golfinho acabou por escapar (pode-se encontrar, em carpaccio, no Tveir Fiskar, mesmo à entrada do porto), a baleia foi provada, e aprovada, no Saegreifinn, mistura de tasca e mercearia, situado num dos barracões verdes que se enfileiram junto à água.

Carlos Miguel Fernandes, Reykjavik (Saegreifinn), Setembro de 2006

Logo à entrada somos recebidos com canapés de baleia-anã fumada, a fazer lembrar a moxama de atum algarvia e andaluz numa versão mais adocicada e macia. Se em confronto com esta última, dada a força do sal, só se aguenta uma cerveja gelada, já a baleia fumada aceita um copo de vinho tinto. Infelizmente, nem uma coisa nem outra se podem encontrar no local. As despóticas restrições islandesas transformam as prateleiras do Saegreifinn em tristes repositórios de água, de coca-cola, e de um líquido de baixíssimo teor alcoólico, produzido especialmente para ser vendido fora das lojas do Estado e que só com muito boa vontade se pode chamar cerveja. Só a comida nos salva! E, para começar, nada melhor do que o chamariz da casa, uma sopa de lagostins, preparada canonicamente, e cuja receita poderá ser encontrada em breve aqui, Na Cozinha. Fabuloso, com um toque exótico dado pelo caril combinado com a nata (já imagino uma variante com leite de coco), que não se encontra nas sopas de peixe mediterrânicas e continentais. Depois de aquecido o espírito com o caldo marítimo, escolhe-se uma espetada da montra, a qual será grelhada na hora. Peixes há muitos, do bacalhau ao halibut (sempre esgotado), passando por outros nomes menos habituais, como a pescada-carvoeira ou o peixe-gato. A estes junta-se novamente a baleia-anã, excelente proposta, e ainda o corvo-marinho, cuja carne se apresentou um pouco seca, não sabemos se por culpa de uma assadura desmazelada ou devido às características do bicho. Quem quiser ir por caminhos mais leves, pode escolher um dos muitos peixes fumados em exposição (salmão, arenque, truta,...) ou um pacote do típico peixe seco islandês, e picar, descansando nas mesas compridas da casa. (Claro que, sem uma cerveja, não se pode comer peixe seco com a alma preenchida.) Outras curiosidades da cozinha islandesa, como o bacalhau podre, a foca recheada ou o arau-de-crista (ou papagaio-do-mar) também podem ser provadas no Saegreifinn, conquanto não as tivéssemos encontrado, ou por ausência da matéria-prima, ou por não sabermos como pedir.
As falhas do Saegreifinn não se esgotam na ausência de bebidas decentes. A hora de encerramento, prematura para quem pretende jantar, e os talheres de plástico e pratos de esferovite, são factores que não atraem os mais exigentes. Mas a qualidade e a variedade dos produtos, e os preços muito abaixo dos elevados padrões de Reyjkavik, são argumentos suficientes para levar qualquer apreciador de peixe e marisco à taberna de Kjartan Halldorsson, o pescador reformado que vai gerindo com eficácia esta casa sita à beira da baía de Reykjavik.

Carlos Miguel Fernandes

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