Wednesday, August 03, 2011

À Mesa com: Vicente Blasco Ibañez

Todos hablaban del famoso all i pebre que se hacía en el Palmar, como si hubieren hecho el viaje sólo para comer.

Vicente Blasco Ibañez, Cañas y Barro

Naquela noite de domingo, Palmar era um deserto. Havia meia dúzia de restaurantes com as portas abertas, e era à porta que estavam os empregados, a conversar com as mãos atrás das costas, a seguir, com o olhar, as poucas pessoas que passavam, e talvez a lamentar o presente ingrato. Numa noite fresca de final de Outubro vimos em Palmar o rosto amargurado da crise espanhola. E nas mesas vazias que ocupavam a rua principal vimos famílias que já não podem sair de casa num domingo, e outras que com isso se ressentem, e que mais tarde ou mais cedo não vão ter comida na mesa. A aldeia de Cañas y Barro, pobre, deprimida, está a cem anos de distância, e, ao mesmo tempo, tão perto.

O Club de Pescadores era o único sítio com sinais de vida. Aí nos sentámos, ao ar livre, e, enquanto esperávamos pela paelha, comemos um delicioso all i pebre de enguias: alho, pimentão, enguias, e um guisado que nasceu ali, nas margens da Albufera, quando os bichos agitavam as águas do charco e quase se deixavam apanhar com as mãos. Agora, tal como os ingredientes das paelhas de Palmar, as enguias chegam de longe, talvez até de outro continente. Os guardiões da Albufera já não têm muito para guardar, a não ser o arroz bomba, e um pequeno naipe de receitas que compõem um capítulo central da gastronomia espanhola. Já não é pouco.

Carlos Miguel Fernandes

Madrid

O La Venencia era o sítio perfeito para começar. Durante a Guerra Civil, Hemingway reunia-se ali com os republicanos, à cata de notícias da frente, mas a velha taberna da Echegeray parece saída de uma Madrid muito mais antiga, eterna. Se, de repente, entrevíssemos através luz brumosa do salão do Venencia um Quevedo embriagado declamando um dos seus poemas satíricos, ou o Capitão Alatriste a tinir o metal com algum biltre a soldo do Santo Ofício, não nos surpreenderíamos. Sim, aquela tasca é o sítio ideal para começar um tapeo de domingo em Madrid. Mas o balcão estava cheio e, na verdade, era muito cedo para um fino. Por isso, continuámos a percorrer languidamente o Bairro das Letras (o dolci baci, o languide carezze, cantou Jorge de León no sábado no Teatro Real), seguindo as memórias do Século do Ouro Espanhol.

Parámos finalmente no Estado Puro, na Plaza Cánovas del Castillo, pausa circular no meio do Paseo del Prado, onde se situa a famosa Fonte de Neptuno. As tapas requintadas estão na moda, e muitas vezes, no meio de tanta “sofisticação” perde-se a essência da tapa: a simplicidade. Não há nada pior do que uma cozinha pedante. Mas no Estado Puro de Paco Roncero não se complica o que não se quer complicado. As batatas alioli com ovas de arenque e o pincho de cordeiro (temperado com manjericão) são o que uma tapa tem que ser. A caña, claro, é madrilena: bem tirada, e com dois dedos de espuma amarga e aveludada.

Depois das tapas havia que continuar o percurso até coisas mais sérias. A Faragullos, uma tasca galega da calle Fúcar, onde se come uma cecina de León perfeita, estava fechada, e não havia tempo para ir ao Cervantes (calle Fúcar, também) comer burriés e gambas de Huelva com a tranquilidade que os bichos merecem. Por isso repetimos o Maceira, na mesma rua e também galego. Sala pequena, mesas e bancos de madeira onde nos acotovelamos com o cliente do lado, um polvo perfeito e uma queimada que tomba qualquer herói. No sábado foi polvo à feira (e berbigões, e queijos galegos, e...), no domingo um guisado. E que guisado! A certa altura, quando já rapávamos o fundo do tacho, fez-se, na sala, o conxuro da queimada, com ritual e poema...

Mouchos, coruxas, sapos e bruxas.
Demos, trasgos e diaños, espritos das nevoadas veigas.
Corvos, pintigas e meigas, feitizos das manciñeiras.
Podres cañotas furadas, fogar dos vermes e alimañas.
Lume das Santas Compañas, mal de ollo, negros meigallos, cheiro de mortos, tronos e raios.
Oubeo do can, pregón da morte , fuciño do sátiro e pé de coello.
Pecadora língua de mala muller casada cun home vello.
Averno de Satán e Belcebú, lume dos cadavres ardentes, corpos mutilados dos indecentes, peidos dos infernales cús, muxido da mar embravescida.
Barriga inútil da muller solteira, falar dos gatos que andan a xaneira, guedella porca de cabra mal parida.
Con este fol levantarei as chamas deste lume que asemella as do Inferno, e fuxirán as bruxas a cabalo das súas escobas, índose bañar na praia das areas gordas.
¡Oíde, oíde ! os ruxidos que dan as que non poden deixar de quemarse na aguardente quedando así purificadas.
E cando este brevaxe baixe polas nosas gorxas, quedaremos libres dos males da nosa ialma e de todo embruxamento.
Forzas do ar, terra, mar e lume, a vos fago esta chamada : si é verdade que tendes mais poder ca humana xente, eiquí e agora, facede cos espritos dos amigos que están fora, participen con nós desta Queimada.

…mas havia que apanhar a camioneta para Granada e não pudemos ficar no Maceira a descansar, com a queimada de Orujo acabada de fazer, e muito menos ir ao último andar do Museu CaixaForum tomar o café, como é hábito. Mas fomos para casa saciados, de corpo e de espírito. E non ho amato mai tanto la vita!

Carlos Miguel Fernandes

Monday, April 04, 2011

Albufera, o berço da Paelha

De la taberna de Cañamel, que era el primer establecimiento del Palmar, salía un grupo de segadores con el saco al hombro en busca de la barca para regresar a sus tierras. Afluían las mujeres al canal, semejante a una calle de Venecia, con las márgenes cubiertas de barracas y viveros donde los pescadores guardaban las anguillas.

Vicente Blasco Ibañez, Cañas y Barro

Só queria comer uma paelha verdadeira, com caracóis e enguias, mas olhavam-me de um modo estranho e algo paternalista, dizendo que a paelha não tem enguias, que isso é o all i pebre, e que uma paelha leva — dependendo de quem nos fala — frango/coelho/marisco/ mistura de carne e marisco. Pois é, mas está tudo nos 3000 años de Cocina Española, de Rosa Tovar e Monique Fuller. E qualquer espanhol mais versado na História da gastronomia sabe que a paelha clássica tem enguias, caracóis e judias verdes e é uma invenção dos pescadores da Albufera, um lago natural que está a poucos quilómetros a sul de Valência, onde se cultiva o arroz essencial para este prato, o Bomba. Lá fui então para Palmar, na margem oriental da Albufera, sem grandes expectativas. Assim foi: paelha de coelho, um all i pebre (alho e pimentão) de enguias como entrada, e um Rioja reserva de 2004, do qual me esqueci dos detalhes (talvez por tomar quase sempre partido pelos Ribera). Para comer a tal dos caracóis e enguias há que ir à Comunidade Valenciana profunda, receio. Lá chegaremos. De qualquer forma, não foi tempo perdido, e valeram a pena as voltas, entre o táxi e a boleia de um camarero; na Andaluzia não encontro uma paelha como aquela que me puseram em Palmar, no Club de Pescadores. E a dois passos do Mediterrâneo, quando parece que ouvimos Joan Manuel Serrat, é outra coisa: soy cantor, soy embustero, me gusta el juego y el vino, tengo alma de marinero… ¿Qué le voy a hacer, si yo nací en el Mediterráneo?

Tremoços

César Aguilera, na sua História da Alimentação Mediterrânica, diz que, na última parte da época medieval, foi o alimento da fome. Em Limpieza de Sangre, a segunda aventura de Alatriste, Arturo Pérez-Reverte coloca o Capitão e o seu protegido Iñigo a comer pinhões e tremoços na Plaza Mayor de Madrid, enquanto assistem a uma corrida de touros. Estávamos em 1623, quando Portugal era Espanha e Filipe era terceiro e quarto. Pouco a pouco, os tremoços foram desaparecendo dos hábitos alimentares dos espanhóis, e, mesmo hoje, apesar de serem presença habitual em qualquer supermercado, ainda não os vemos nas barras de Madrid ou de Sevilha, nem à laia de aperitivo, condição natural do tremoço (e para mais não dá) e hábito que, diz-nos outra vez Aguilera, nos chegou desde Bizâncio. É verdade que no Campo del Principe há uma casa — apropriadamente chamada Altramuce — onde nos põem esta espécie de milho com esteróides com a segunda ou terceira tapa, e no velho Tabernaculo da calle Navas também costumam aparecer quando nos caem em sorte as tortillitas. Mas é em Lisboa que os tremoços são as estrelas das cervejarias, a “tapa” típica e solitária da imperial. Não há fome que não dê em fartura.

Carlos Miguel Fernandes

Thursday, February 17, 2011

Zucchini Marinati

Chama-se A Tavola com l’Olio de Oliva e foi um dos meus primeiros livros de cozinha. Comprei-o em Florença, ou em Lucca, não sei bem quando, acho que em 2001, mas pode ter sido em 1997 (a memória…), e serviu-me de guia para os primeiros pesto, quando ainda não havia mil receitas de cada prato, italiano ou do Curdistão, à distância de um clique. Na verdade, é apenas um livrinho, e hoje já não serve para muito, a não ser como recordação de outras expedições. Foi útil para isto, no entanto, para fazer curgetes marinadas, ou zucchini marinati, em estrangeiro, mas, claro, cada receita é apenas um farol, e com o ponto de referência bem localizado podemos então procurar abrigos mais acolhedores ou mais exequíveis. Com vinagre de rosmaninho da República Checa e curgetes secas que vieram da Turquia, por exemplo. E orégãos. O importante é que o resultado, mais ou menos canónico, seja motivo para recordar o Al Vino Al Vino, as curgetes marinadas do tasco, o pinot noir ou o riesling que servem a copo (o riesling cai melhor com estes zucchini), e aquele momento, ao final da tarde e no coração do Rioni Monti, em que até nos esquecemos que, depois da hora de jantar, meia Roma é uma cidade morta. Ou uma cidade meio morta. Como preferirem.


Carlos Miguel Fernandes

Comer em Roma


Um vinho e um aperitivo no Al Vino Al Vino da Via dei Serpenti — curgetes marinadas, por exemplo, ou um simples prato de queijos —; alcachofras fritas no La Carbonara, um restaurante recatado, mas extraordinário, sito na Via Panisperna, bairro Rione Monti; e a pasta fresca também do La Carbonara!, que pasta meus senhores!, que pasta; um ossobuco no Pietro Al Pantheon, lugar seguro rodeado de armadilhas para turistas; e, finalmente, uma saltimbocca perfeita no Da Nino, Via Merunala, 74, longe dos trilhos turísticos, mas suficientemente perto do Coliseu para merecer um desvio. Cada um desenha as suas rotas pelas grandes cidades como pode, evitando as emboscadas que lhe minam o caminho, usando todos os recursos assimilados noutras aventuras. No final, se as regras mais elementares forem respeitadas e se os padrões forem ajustados ao contexto, o balanço é quase sempre positivo.


Carlos Miguel Fernandes

Queijos Espanhóis - Afuega' Pitu

Chama-se Afuega’l Pitu, é asturiano, e César Aguilera explica: Foi dito que devia dar-se a provar a um frango (“pitu”), e se este se asfixiava ou “afuegaba”, o queijo estava no ponto (literalmente, em bable, dialecto dos asturianos: “asfixia o frango”). Acrescentamos que é um queijo de leite de vaca cru, e que, por essa razão, as asaes de Espanha chegaram a propor a sua proibição. Havia que agradar aos mui salubres burocratas de Bruxelas, de onde chegam leis e normativas que proíbem a elaboração de queijos a partir de leite cru, mas, felizmente, os asturianos não se deixaram subjugar, e o Afuega’l Pitu continua a ser produzido, nas variedades branco e vermelho (com pimentão), para gáudio de quem aprecia a sua textura rude e o seu sabor amargo e delicado. Em Madrid podem prová-lo na na Casa Gonzalez, número 12 da calle León (uma perpendicular à Huertas). A versão roja, mais forte, pede um tinto recio, dizem os especialistas, e o Finca La Estacada Cosecha de Família 2006, Syrah e Merlot, com 14% de álcool, está muito bem. Para acabar a garrafa, pode vir uma cecina de vaca. Mas para essa faena o melhor é descer até à calle Fucar, entrar no Faragullas, e pedir uma dose, cortada à mão, da enorme peça de cecina (de León, claro) que quase esmaga o balcão. Bom proveito.

Carlos Miguel Fernandes