Thursday, December 28, 2006

Livros do Mundo – I (Cozinha extremeña)

De Mérida vieram dois livros de gastronomia acima da média que enriquecem a biblioteca (ver aqui). O Recetario de Cocina Extremeña é, como o nome indica, um lista de receitas tradicionais da província espanhola da raia. A lista revela uma gastronomia nascida da terra, sazonal, com algumas especialidade circunscritas. Dos animais aproveita-se tudo, e as ervas aromáticas dão vida a pratos que, de outra forma, não teriam carácter inolvidável. Nas receitas mais simples encontramos as setas (setas de cardo, setas en caldereta, setas en salsa, e outras receitas), os espargos (com ovos escalfados, com huevo duro, ou guisados), e outros produtos da terra, como as judias, as acelgas, as favas e as criadillas de tierra. O cojondongo e o zarangollo são dois clássicos desta secção. Nas sopas, à miríade de gaspachos juntam-se, entre outras, a sopa de ajo, a sopa de vigilia, com bacalhau, a sopa de habas (feijão grande), e a sopicaldino, com galinha, presunto e toucinho.

Dos “arrozes” destaca-se o de lebre, que ilustra bem o peso da caça na cozinha extremeña. Os cozidos vão desde o alentejano, que, como o nome indica, é confeccionado com grão, ao cocido extremeño da Cofradia (entidade que edita o livro), passando pelo clássico olla podrida. As frituras, ao contrário das andaluzes, baseiam-se na carne de aves, no presunto, na batata e no bacalhau. Este último é honrado com várias receitas na secção do mar; e o cação, tal como no vizinho Alentejo, também entra na lista, com a interessante receita cazón con laurel tostado. Dos rios, temos a lampreia, a truta e as enguias, entre outras espécies. (A lamprea a la antigua extremeña não engana; é prato nobre, com toda a certeza.)
As receitas de carne são infinitas. Há o cabrito assado, frito ou picado; o porco a oferecer todo o seu corpo para um receituário próprio; o borrego a entrar nas caldeiradas e nas chanfainas. Do gado bovino destaca-se a língua, os callos (dobrada) e o rabo de boi. O javali, a codorniz, a perdiz e a já citada lebre são alguns dos bichos que animam a secção da caça.
O item mais caricato surge no final do livro, no meio das azeitonas, dos caracóis, das rãs e da sopa de canónigos, e arquivado no capítulo “Vários”. Falo do lagarto, produto raríssimo nos dias de hoje devido à proibição da sua captura. Ao contrário do que aconteceu com as rãs, cuja importação resolveu o problema, as restrições ecológicas remeteram o entomatá de lagarto e o lagarto en salsa de almendras para o registo das recordações remotas.

Deixo-vos com a transcrição de um clássico da cozinha extremeña, o cojondongo (pág. 34):
Tuvo su origen en la “macarraca”, plato desprovisto de todo artificio, que se tomaba a media mañana en los dias calurosos y qye se hacia sobre el terreno: bien ene l tajo del segador, o en hato del pastor; ya que unos e otros llevaban consigo los ingredientes: agua fresca en un barril de barro de Salvatierra, aceite, vinagre, sal y ajo, en aceiteros y saleros de astas de buey e pan, que al ser integral y de trigo duro, se conservaba durante muchos dias en costales de lona.
Solo habia que majar en el “dornillo”o cuenco de encina el ajo, el pan y abundante aceite. Se le añadia el vinagre, la sal y el agua y...a comer. A veces, se migaban con “sopones”, es decir, con trozos de pan gruesos.
Se acompañaba de algún racimo de uvas o aceitunas. Téngase en cuente que su misión era refrescar, pero sin llenar en demasia, pues había que continuar la faena.
Más tarde, se suprimió parte del agua, quedóse una pasta clarita a la que se incorporó un abundante picado (nunca majado) de tomates, pimientos y cebolla.
Este es el actual cojondongo, que sigue cumpliendo su primitiva misión: refrescar.
Pero al llevar un buen aporte vitamínico, se torna sin acompañamento, mas bien como entrada de una comida seria.

Carlos Miguel Fernandes

Wednesday, December 13, 2006

À Mesa do Mundo – III (Altair)

(A poucos dias de regressar ao Altair de Mérida, deixo aqui, com pequenas revisões, o texto escrito e publicado no No Mundo há cerca de três anos, sobre a primeira visita ao excelente restaurante extremeño.)


Mérida, fundada em 25 a.C., cresceu à beira do Guadiana e tornou-se na próspera capital da província romana da Lusitânia. As ruínas romanas são o orgulho da cidade: o anfiteatro, o teatro, o hipódromo, o Arco de Trajano, o aqueduto, a ponte que atravessa o Guadiana e possíveis tesouros ainda escondidos, tornaram Mérida num paraíso para os arqueólogos e uma surpresa para aqueles que pasmam diante das demonstrações da força do engenho humano. O anfiteatro, em particular, é admirável na imponência que ainda hoje, em ruínas, nos assombra. E a luz azulada que, naquela tarde de inverno, as suas colunas de mármore reflectiam, transmitia a serenidade que nos costuma assaltar quando a fragilidade da existência é posta em evidência diante da dimensão temporal da civilização humana.


Estávamos em Espanha, e em Espanha a liberdade de escolha do adepto de jantares sem horas marcadas é maior. Por isso, entrámos no Altair, sito na Avenida José Fernández Lopez, junto ao rio Guadiana, por volta das vinte e duas e trinta, e lá ficámos nas três horas seguintes. As propostas da carta não desmereciam a nossa atenção, mas optou-se pelo menu degustação que, embora servido apenas para mesas completas — quatro pessoas — segundo indicação da carta, foi gentilmente confeccionado para o nosso pequeno grupo de três convivas. Para a abertura foi requisitada a presença do Bombay Saphire, versão 47% de álcool, acompanhado com água tónica. Não, não é apenas um capricho etílico. De acordo com textos por nós consultados há alguns anos, e dos quais não temos registo, só uma alta percentagem de álcool permite a libertação de todos os sabores e aromas contidos num gim. A menor percentagem de álcool de outras versões é determinada pelos impostos. Ainda do departamento espirituoso, mas já com a carta de vinhos aberta, seleccionámos o Rioja Vina Salceda Crianza, de 1999, para nos acompanhar durante a refeição. É, aliás, o conjunto de vinhos da região de Rioja que se encontra maioritariamente representado nesta carta de vinhos dividida por regiões e com umas generosas dezenas de exemplares.

O menu degustação é composto por uma entrada, uma sopa, um prato de carne, um prato de peixe e uma sobremesa. É, no entanto, tradição da casa oferecer uma pequena introdução ao festival que se avizinha. Começou-se com um creme de cenoura com uvas acolitado por uma pequena malga com miolo de berbigão inserto em cubo de gelatina, conjunto que satisfez o palato, eliminando qualquer cepticismo que ainda nos pudesse incomodar, e preparou o terreno para o deslumbramento que estava para vir. Os espargos com ovo escalfado e endívias estavam perfeitos; o tratamento dado ao ovo, de uma simplicidade desarmante, só está ao alcance de grandes mestres. O caldo de beterraba com lulas, embora correctíssimo e de sabor inatacável, não foi capaz de atingir os níveis de prazer proporcionados pelo resto da refeição. Logo a seguir, o lombo de robalo salteado, com batata assada no forno, portou-se como a sua frescura o exigia: exemplarmente. O auge, o zénite, o acme da refeição no restaurante Altair estava reservado para o ossobuco de cervo. A carne tenra, o tempero sem mácula e o tutano a despertar papilas que nunca haviam dado ao cérebro sinal da sua existência, tornaram as pequenas peças da perna do animal na estrela da noite.

A sobremesa prometida pelo menu, banana frita com creme de chocolate e gelado, foi antecedida por mais um regalo da casa: bolas de chocolate envolvidas por queijo de cabra e, provavelmente, com um pequena fritura em óleo muito quente. A combinação entre o chocolate e o queijo, perturbador para as mentes mais conservadoras, resultou numa experiência gastronómica inolvidável. Repeti-la exigirá paciência e prática, em casa, ou demanda, fora dela, dada a delicadeza exigida no tratamento deste conjunto de sabores. A refeição prolongou-se durante mais uma hora, entre cafés e orujo de ervas. O serviço de mesa, feminino e eficiente, foi, acima de tudo, discreto. Que mais se poderá exigir?

O Altair foi criado pelos proprietários do restaurante Atrio de Cáceres. Sabendo que o Atrio conquistou este ano a sua segunda estrela no guia Michelin, não é muito especulativo pensar que, daqui a alguns anos, a prestigiada instituição francesa poderá começar a premiar o esforço e o engenho dos responsáveis pelo Altair. Por enquanto, os seus dois anos de vida não lhe permitem a tanto almejar, pois a manutenção da alta bitola, durante anos, não é peso de somenos na avaliação dos exigentes inspectores Michelin.


Carlos Miguel Fernandes


P.S. Parece que o Altair ainda não conseguiu a sua estrela Michelin. Tendo em conta os estranhos critérios da instituição francesa, não é pormenor que (n)os deva preocupar.

Monday, December 11, 2006

Sopa de Lagostins da Islândia

Todas as receitas clássicas estão sujeitas a interpretações e mutações. Surgida na terceira vaga da gastronomia islandesa, a sopa de lagostins (humarsúpa) não deve ser excepção. A versão que aqui apresento, encontrada no livro Cool Cuisine de Nanna Rögnvaldaradóttir, pode ser apenas uma de entre muitas, e foi experimentada há poucos dias com os lagostins dos mares do norte substituídos por um punhado de camarões e uma posta de corvina (podem ser usados outros peixes e mariscos, desde que tenham sabor suficientemente forte para ombrear com a personalidade “quente” do caldo). Exceptuando uma pequena redução na quantidade de legumes, segui com rigor o resto da receita, a qual reza assim:
Depois de reservado o “miolo” dos lagostins (ou camarões), partem-se as cascas, as quais se fritam em óleo durante alguns minutos (usei azeite). Junta-se meia cebola picada, e duas colheres de sopa de pó de caril (o caril, e até o significado da palavra, dar-nos-ia tema para muitos textos; para o ensaio que relato utilizei uma mistura de especiarias já preparada há algum tempo, que me foi ofertada pelo Paulo Maia, e que inclui malaguetas, grãos de pimenta preta, folhas secas de caril, pó de curcuma, e sementes de coentros, de cominhos, de mostarda preta e de feno-grego). Mexe-se bem até a cebola ficar dourada. Junta-se um litro de água e uma cabeça de salmão (foi aqui que entrou a posta de corvina, em lugar da cabeça do peixe), tempera-se com sal e pimenta, e deixa-se em lume brando durante uma hora. Filtra-se o caldo, o qual retorna ao lume para ferver novamente, desta vez com duas cenouras, quatro tomates pequenos e um pimento vermelho, tudo cortado em quadrados (tomates) e tiras com dois ou três centímetros de comprimento (cenouras e pimento). Os legumes cozem durante quinze minutos, antes de entrarem 200 ml de natas. Levanta-se novamente a fervura, e juntam-se os lagostins (os camarões e a corvina em lascas, na versão experimentada). Tira-se a sopa do lume, e deixa-se repousar durante três minutos. Rectificam-se os temperos. As instruções sugerem ainda umas gotas de tabasco, mas essa opção depende da força do caril utilizado.

O resultado não faz esquecer a sopa original com os deliciosos lagostins islandeses, mas a receita é suficientemente sedutora para nos aventurarmos com outros mariscos e peixes. O segredo está no caldo e o toque final é dado por matéria-prima aquática de qualidade. Um inesperado prato de sabores orientais vindo das águas frias da Islândia, que não fica atrás das sopas de peixe preparadas nos países mediterrânicos e nos rios da Europa Central.

(Esta receita é especialmente dedicada e sugerida ao JLP, amigo das coisas da mesa e leitor e apreciador deste blogue. Esperamos que possa conhecer em breve a desejada Islândia. Aqui fica um cheirinho!)

Carlos Miguel Fernandes

Wednesday, December 06, 2006

À Mesa do Mundo - II (Saegreifinn)

É costume dizer-se que as cidades portuárias partilham características comuns. Fala-se do ambiente de encruzilhada, do convívio canalha, dos marinheiros e das suas conversas épicas e turvas de álcool, pautadas pelas dames qui leur donnent leur joli corps, as quais vão entretendo os Ulisses invertidos com nostalgia do próximo porto entre uma peleja e um copo de rum. Mas em Reykjavik é diferente. No porto velho de Reykjavik não há des marins qui boivent, nem acordeões, nem gestos graves. A maresia está presente, nos cais há algum ferro retorcido e ferrugento, mas envolve-nos uma aura asséptica, que na verdade se estende por toda a cidade, mas que se estranha ainda mais no porto, dado os hábitos alimentares das gentes do mar islandês, pouco dadas a modernidades hipócritas. Os marinheiros islandeses não se coíbem de afinfar um golfinho ou uma baleia, animais de pelúcia da sensibilidade urbana, e é no porto velho que o gastrónomo curioso pode encontrar tais regalos. E se o golfinho acabou por escapar (pode-se encontrar, em carpaccio, no Tveir Fiskar, mesmo à entrada do porto), a baleia foi provada, e aprovada, no Saegreifinn, mistura de tasca e mercearia, situado num dos barracões verdes que se enfileiram junto à água.

Carlos Miguel Fernandes, Reykjavik (Saegreifinn), Setembro de 2006

Logo à entrada somos recebidos com canapés de baleia-anã fumada, a fazer lembrar a moxama de atum algarvia e andaluz numa versão mais adocicada e macia. Se em confronto com esta última, dada a força do sal, só se aguenta uma cerveja gelada, já a baleia fumada aceita um copo de vinho tinto. Infelizmente, nem uma coisa nem outra se podem encontrar no local. As despóticas restrições islandesas transformam as prateleiras do Saegreifinn em tristes repositórios de água, de coca-cola, e de um líquido de baixíssimo teor alcoólico, produzido especialmente para ser vendido fora das lojas do Estado e que só com muito boa vontade se pode chamar cerveja. Só a comida nos salva! E, para começar, nada melhor do que o chamariz da casa, uma sopa de lagostins, preparada canonicamente, e cuja receita poderá ser encontrada em breve aqui, Na Cozinha. Fabuloso, com um toque exótico dado pelo caril combinado com a nata (já imagino uma variante com leite de coco), que não se encontra nas sopas de peixe mediterrânicas e continentais. Depois de aquecido o espírito com o caldo marítimo, escolhe-se uma espetada da montra, a qual será grelhada na hora. Peixes há muitos, do bacalhau ao halibut (sempre esgotado), passando por outros nomes menos habituais, como a pescada-carvoeira ou o peixe-gato. A estes junta-se novamente a baleia-anã, excelente proposta, e ainda o corvo-marinho, cuja carne se apresentou um pouco seca, não sabemos se por culpa de uma assadura desmazelada ou devido às características do bicho. Quem quiser ir por caminhos mais leves, pode escolher um dos muitos peixes fumados em exposição (salmão, arenque, truta,...) ou um pacote do típico peixe seco islandês, e picar, descansando nas mesas compridas da casa. (Claro que, sem uma cerveja, não se pode comer peixe seco com a alma preenchida.) Outras curiosidades da cozinha islandesa, como o bacalhau podre, a foca recheada ou o arau-de-crista (ou papagaio-do-mar) também podem ser provadas no Saegreifinn, conquanto não as tivéssemos encontrado, ou por ausência da matéria-prima, ou por não sabermos como pedir.
As falhas do Saegreifinn não se esgotam na ausência de bebidas decentes. A hora de encerramento, prematura para quem pretende jantar, e os talheres de plástico e pratos de esferovite, são factores que não atraem os mais exigentes. Mas a qualidade e a variedade dos produtos, e os preços muito abaixo dos elevados padrões de Reyjkavik, são argumentos suficientes para levar qualquer apreciador de peixe e marisco à taberna de Kjartan Halldorsson, o pescador reformado que vai gerindo com eficácia esta casa sita à beira da baía de Reykjavik.

Carlos Miguel Fernandes

Thursday, October 26, 2006

À Mesa do Mundo - I

No restaurante Chtopskie Jadto, em Cracóvia (Setembro de 2005). Não é o lugar ideal para quem procura refeições leves. Rude e excessivo. Um antro de pecado que oferece a redenção. (E os melhores cogumelos do mundo!)

(Fotografias de Maria João Martins)

Carlos Miguel Fernandes

Thursday, October 12, 2006

Dias Perfeitos
(Publicado também no No Mundo.)

O objectivo estava bem definido há alguns dias. Pretendia-se ensaiar duas receitas, uma variação do risotto de miúdos de pato, onde se acrescentaria uma noz de fígado de ganso, e as gambas com peito de pato fumado e molho de natas, foie gras e erva-limão, receita que me percorria a mente há muito tempo, inspirada numas memoráveis gambas com toucinho fumado que provei no passado mês de Maio em Sevilha. Para a tarefa era necessário atacar umas das secções mais nobres da prateleira das delícias: o foie gras húngaro.
As regras são claras. Abre-se a lata cujo prazo de validade está mais perto de terminar. Desta vez, saiu-nos um fígado de ganso com trufa! Reservaram-se dois nacos para as receitas referidas, e o restante foi cortado às fatias e colocado na mesa acolitado por uma redução de sumo de laranja, e miolo de pão amassado e tostado no forno. A acompanhar estava o Tokaj Aszú Chateau Dereszla 2000 (5 Puttonyos). A combinação do sabor lascivo do fígado de ganso, ao qual se juntava por vezes a delicadeza e frescura da trufa negra, com a acidez da laranja e o travo a pêssego e mel do Tokaj é uma experiência que nos lacera os sentidos durante vários dias. O prazer é indescritível. Tudo o que vem para a mesa a seguir sabe a palha. Por isso, uma correcta avaliação das novas receitas terá que ficar para outra altura.

Carlos Miguel Fernandes

Sunday, September 03, 2006

Uma Refeição (7): Os Vinhos (Sugestões de Fernando Cruz Gabriel)

Prato 3: Foie Gras Frito na Própria Gordura com Compota de Maçã, Presunto de Pato Crocante e Mandioca

Kracher Cuvée Beerenauslese, 2003
Castas dominantes: Chardonnay (80%) e Welschriesling (20%)
Produtor: Kracher (Áustria)

Um Late Harvest, feito a partir de uvas colhidas à mão e carregadas de "podridão nobre" (por isso é um Beerenauslese), que lhe dá uma elevada concentração de açúcar residual. Apesar da "identidade húngara" do prato, este Kracher parece-me preferível à generalidade dos Tokaj, pelo nariz delicado e pelo aveludado no palato. Às vezes encontra-se cá, no Club Gourmet do El Corte Inglés, a um preço surpreendentemente razoável. Necessita de copo adequado e refrigeração apropriada. Tem a vantagem de ser também uma excelente escolha para sobremesa.

Prato 4: Raia em cama de pão catalão, com espetadinha de camarão e caña de lomo ibérico e açorda de ovas de bacalhau

Vindima 7 de Outubro 2003
Casta Dominante: Viognier
Produtor: Quinta do Monte d’Oiro (Portugal).

Contra a boçalidade geral dos Chardonnay, a minha recomendação é um Viognier: um branco com personalidade própria, para variar. A baixa acidez e elevado teor alcoólico (para um branco) permite-lhe acompanhar pratos de peixe de sabor forte e vincado. A Quinta do Monte d’Oiro produziu um excelente Viognier: Vindima 7 de Outubro 2003. Se conseguir encontrar garrafas à venda —parabéns: merece saboreá-las. Quando comprei as primeiras garrafas sugeriram-me que as usasse para acompanhar um borrego assado. Julguei que se tratava de uma brincadeira. Não era.

Prato 5: Pato com risotto dos seus “miúdos” e salada de rucola e agrião com Parmesão

1. Château le Grand Vostock Cuvée Karsov
Casta dominante: Cabernet Sauvignon
Produtor: Château Le Grand Vostock (Rússia)

2. El Nido Clio 2003
Castas dominantes: Monastrell (70%), Cabernet Sauvignon (30%)
Produtor: Bodegas El Nido (Espanha)

3. 2001 Zinfandel - Sonoma County, Monte Rosso Vineyard
Casta dominante: Zinfandel
Produtor: Rocking Horse Vineyards (EUA)

No caso deste prato, a escolha óbvia é um Cabernet Sauvignon, mas um Zinfandel ou até um Pinot Noir são perfeitamente razoáveis. Todos têm características adequadas ao acompanhamento de um prato de pato. Acabei por excluir os Pinot Noir de consideração e fazer três recomendações.

A primeira escolha é talvez a mais inesperada: um Cabernet russo. Na Rússia é costume dizer-se que o melhor vinho nacional é o vodka. Os vinhos a preços mais modestos eram importados da Moldova e da Geórgia — até às sanções económicas decretadas por Putin. Para lá disso, só vinhos ocidentais. A ideia de um vinho russo de elevada qualidade parecia um projecto irrealizável. Até que em 2003 Nikolai Pinchuk, director do Château Le Grand Vostock, decidiu tentar. Com tecnologia francesa, apoio de consultoria do Château Mouton Rothschild e sob a direcção do enólogo Frank Duseigneur, em poucos meses criaram-se as condições para a produção de vinhos de alta qualidade. Devia ser um case study obrigatório, em países como Portugal.

Num jantar em Moscovo experimentei este Château le Grand Vostock Cuvée Karsov. Acompanhou uma entrada de língua de vaca em gelatina de cogumelos com molho amargo de rábanos e um prato principal de costeletas de vitela, com molho de uva e tangerina. É um vinho estruturado, onde se nota bem a madeira. A probabilidade de o encontrar no mercado nacional é próxima do zero, mas como gostaria de o voltar a provar, recomendo-o.

Em alternativa, sugiro um vinho recente e notável: o El Nido Clio 2003. É produzido na zona de Jumilla, no interior do triangulo definido por Murcia, Albacete e Alicante. O Monastrell, uma casta antiga que a filoxera quase exterminou, dá-lhe uma cor mais escura do que o matiz normal dos Cabernets. É um vinho intenso e carregado de taninos. Em comum com o Cuvée Karsov tem um travo picante, apimentado, e um final prolongado. Se não estiver disponível por cá, deve ser fácil de encomendar (das garrafas que trouxe de Bilbau, já só tenho uma).

A vinha de Monte Rosso é uma vinha “histórica” de Sonoma County, CA: data do séc. XIX e tem condições geográficas e climatéricas excepcionais. Adicionalmente, as vinhas de Zinfandel tendem a ser antigas (a casta é muito resistente). Estes dois factos explicam a elevada quantidade e qualidade de vinhos desta casta originários de Sonoma County.

O Zinfandel produzido pela Rocking Horse Vineyards poderá não ser o melhor da região: tenho lido notas de prova extremamente elogiosas a outros vinhos da mesma casta, como por exemplo o Zinfandel produzido em Sonoma County pela Ravenswood. Mas decidi basear as minhas recomendações no que bebi, não no que li. É um vinho carregado de fruta, estruturado (tem 16°), com sabor a noz moscada e um final longo. Espero que o pato não se deixe intimidar.

Por fim, uma recomendação geral: é fundamental escolher os copos apropriados às características dos vinhos. A linha Vinum extreme da Riedel é capaz de satisfazer todas as necessidades. A aquisição de diferentes tipos de copos de vinho não exige uma despesa tão elevada como possa parecer à primeira vista: há sempre castas que são consumidas com maior frequência relativa e o mesmo formato de copo, por regra, adequa-se a diversas castas. Só é preciso saber escolher.

Fernando Cruz Grabriel

Wednesday, August 30, 2006

Uma Refeição (6): Sorvete de Lima e Hortelã

Numa panela, despeja-se um copo de água (dois ou três decilitros) e o mesmo volume de açúcar. Junta-se um copo de sumo de lima, a casca picada de uma lima e um molho pequeno de hortelã. Juntam-se também alguns ramos de coentros, salsa e manjericão. Deixa-se ferver durante dez minutos. Filtra-se a mistura, espremendo bem as ervas. Coloca-se no congelador durante uma hora, ao fim da qual se retira o sorvete apenas para o “bater” um pouco. Volta-se a colocar no congelador durante mais algumas horas. Serve-se uma bola decorada com algumas folhas de hortelã e manjericão.

Nota: misturado com cachaça ou vodca, este sorvete é ideal para limpar o palato entre pratos.

Carlos Miguel Fernandes
Uma refeição (5): Pato com risotto dos seus “miúdos” e salada de rucola e agrião com Parmesão

Este prato não disfarça as suas cores italianas, mas a personagem principal, o pato, é preparado de acordo com uma receita húngara. As quantidades indicadas, tal como nas receitas anteriores, servem quatro pessoas em regime de degustação. Vamos por partes:

O Pato. Tempera-se um peito de pato com uma chávena de vinho branco, sumo de meio limão, uma colher generosa de mel, duas ou três folhas de louro e alguns dentes de alho esmagados. Deixa-se a marinar durante um par de horas no frigorífico antes de fritar em óleo de amendoim durante 10 minutos (cinco de cada lado). Fatia-se a carne, a qual deve estar mal passada, mas sem largar sangue.

O Risotto. Fazer um risotto é uma tarefa que, parece ser bem executada, requer muitas tentativas prévias e quase tantos erros. É necessário “esquecer” tudo o que se aprendeu sobre o arroz malandrinho característico da península ibérica. O risotto não se quer solto, quer-se cremoso. O risotto não se deixa em lume brando a cozer, sem meter a colher; no risotto mexe-se, e mexe-se muito! Mas, mais do que tudo, o risotto pede...risotto. Arroz italiano. Carnoli, Arboreo ou Vialone Nano, tanto faz, embora o último, de grão mais pequeno, como o nome indica, seja rejeitado pelos puristas, que o deixam para as sopas. O Arboreo é nobre, e mais raro. O Carnoli é o clássico. Usar arroz italiano na confecção de um risotto não é um preciosismo pedante. O grão deste arroz tem características únicas e necessárias para atingir os resultados que se pretendem. Usando outro tipo arroz, pode-se respeitar o processo todo e, mesmo assim, não ficaremos com mais do que um pilaf. Por isso, depois de saltear uma cebola bem picada e dois dentes de alhos laminados em três colheres de sopa de azeite, vamos juntar uma chávena bem cheia de Carnoli (ou Arboreo, ou até Vialone...) e deixar que os grãos fritem durante alguns minutos na mistura (o tacho deve ser baixo e largo; um wok, por exemplo, presta-se bem à confecção do risotto, embora, obviamente, existam opções mais ocidentais). Quantos estes começarem a querer mostrar aquela transparência dourada característica do arroz frito, sabe-se que chegou a altura de juntar o líquido. E aqui paramos noutro ponto crucial: o caldo.
Não se faz risotto sem caldo. (Já tentei, e os resultados foram desastrosos.) É preciso qualquer coisa para dar vida à água onde o arroz vai cozer: carne, peixe, marisco, legumes. Para o nosso risotto de miúdos de pato vamos usar o caldo que emerge da cozedura de três moelas e três fígado. Assim, junta-se o útil ao agradável. Para além de se criar com um caldo rico e ideal para o risotto, faz-se também a pré-cozedura das moelas, as quais, sem esse processo, ficariam intragáveis (as moelas de pato são muito rijas e, mesmo cortadas em pequenos pedaços, não encontram, no tempo de cozedura do risotto, calor suficiente para amolecer). Quarenta e cinco minutos a cozer num litro de água com pouco sal deve ser suficiente para amaciar os buchos. Os fígados entram nessa altura para mais cinco minutos de cozedura. Retiram-se os fígados e as moelas, e mantém-se o caldo quente para ser usada no risotto (o caldo nunca deve entrar frio). Regressemos ao nosso arroz, que se encontrava no fogo à espera do caldo, mas ao qual vamos juntar antes as moelas cozidas e picadas, para alourar um pouco, e a seguir um decilitro de vinho branco. O vinho não é um ingrediente fundamental para a nossa receita, mas dá alma ao risotto, abrindo-lhe ainda mais os sabores. (Diz quem sabe que espumante faz ainda mais maravilhas.) Deixa-se o arroz absorver grande parte do vinho, mexendo sempre com uma colher de pau. Juntam-se os fígados picados. A partir dessa altura vai-se adicionando o caldo, lentamente, até o arroz estar quase cozido (no final, deve estar al dente). A água nunca deve afogar o arroz, mas apenas cobri-lo em parte, como um rio faz à areia num estuário largo. Quando o caldo começar a rarear, junta-se mais, sempre com controlo cuidadoso da estado da cozedura. Como o caldo já tem sal, não deverá ser necessário acrescentar mais. (Aliás, o arroz deve até manter-se ligeiramente insosso até ao final da cozedura, pois o Parmesão é salgado e compensa a falta de tempero.)
Quando o arroz estiver quase cozido, e enquanto a última porção de água vai desaparecendo, atiram-se umas lascas de Parmesão para dentro do tacho, e mexe-se muito bem, deixando o queijo invadir o risotto, transmitindo-lhe cremosidade, antes de apagar o fogo. Também se pode acrescentar uma noz de manteiga.

A Salada. Mistura-se uma mancheia de folhas de agrião com outra de rucola. Rega-se um molho de vinagrete feito de três colheres de sopa de azeite, uma de vinagre e outra de sumo de tomate (espremido de um tomate fresco). Mexe-se bem.

O Prato. Colocam-se no prato quatro ou cinco fatias de pato, uma bola de arroz e um pouco da salada. Por cima desta, deitam-se lascas muito finas queijo parmesão que se regam com um fio de azeite (bom azeite, sempre bom azeite*). Pode-se ainda ralar algum Parmesão por cima do risotto, ou apresentar na mesa um naco de queijo e um ralador.

Carlos Miguel Fernandes

*Comprei há pouco tempo em Sevilha um azeite de sabor forte, adequado para a competir com a personalidade do Parmesão. É um azeite de acebuchina, produzido por El Callejón.
Uma Refeição (4): Raia em cama de pão catalão, com espetadinha de camarão e caña de lomo ibérico e açorda de ovas de bacalhau

Regressamos à mesa com um prato de inspiração mediterrânica. As quantidades foram escolhidas para uma refeição de degustação para quatro pessoas, mas, duplicando-as, a receita pode ser transformada num prato principal de uma refeição mais curta. Vamos começar.

Lava-se muito bem a raia e tempera-se com azeite, alho, sal, pimenta e coentros frescos (uma “asa” de raia grande, ou duas mais pequenas, é quantidade suficiente para quatro pessoas). Frita-se o peixe em azeite durante quinze minutos (dez minutos de um lado, sem mexer, e cinco do outro). Entretanto, torram-se quatro fatias finas de pão (pão do sul, sempre). Rala-se meio tomate por cima de cada torrada e rega-se com um fio de azeite. No prato, a raia vai aparecer por cima deste “pão catalão”.
Para a espetada, descascam-se quatro gambas grandes (mantendo as cabeças) que vão estagiar no frigorífico durante algumas horas, temperadas com alho, gengibre, sal e pimenta. Fazem-se quatro espetadas atravessando, com um palito grande ou com um pau de espetada, um pequeno quadrado de cebola, outro de pimento e um cubo de caña de lomo ibérico de bellota (penso que em Barrancos já se produzem coisas de qualidade semelhante, mas ainda não provei; no entanto, tendo em conta a qualidade estratosférica do presunto da Casa do Porco Preto, penso que é uma crença bem sustentada). A gamba é colocada em U, com o pau a furar-lhe a cabeça e a cauda, deixando no meio os outros ingredientes. Fritam-se as espetadinhas em óleo de amendoim muito quente durante cerca de um minuto de cada lado (a primeira face deve apanhar sempre mais algum “calor”).
A confecção da açorda começa alguns dias antes, quando o pão (cerca de 250 g) é deixado desprotegido e a enrijecer. (Mais uma vez, recomenda-se que o pão seja trazido do sul.) Depois, antes de pôr a mão nos tachos, inverte-se o processo, juntando-lhe água até amolecer. Entretanto, coze-se 100 g de ovas de bacalhau durante dez minutos num litro de água com um pouco de sal. Despeja-se um pouco da água da cozedura no pão, que já deve estar bem ensopado, e reserva-se o resto. Numa panela, aquecem-se três colheres de sopa de azeite e fritam-se três dentes de alho esmagados durante um ou dois minutos. Retiram-se os alhos, e salteiam-se as ovas previamente trituradas. Quando as ovas estiverem alouradas, adiciona-se o pão. Mexe-se muito bem, e junta-se um ramo de poejo, dois dentes de alho bem picados e, aos poucos, a restante água da cozedura das ovas. Quando a mistura estiver uniforme, junta-se uma gema de ovo e duas colheres de sopa de coentros frescos picados. Rectificam-se os temperos, mexe-se durante um minuto e retira-se do fogo. A açorda está pronta para ser servida.
Apresenta-se tudo num prato grande, com as três personagens afastadas umas das outras para que os sabores não se misturem.

Carlos Miguel Fernandes

Thursday, July 20, 2006

Cerveja

O Francisco José Viegas não gosta de Sagres Chopp, mas gosta de cerveja e gosta de escrever sobre cerveja. O livro que ontem foi apresentado na cervejaria Trindade fazia falta. Não só para orientar os olhos nas prateleiras dos supermercados, mas também para, como foi referido na “conversa” que teve lugar no jardim (que belo fim de tarde!), para retirar a cerveja do seu lugar subalterno nas mesas portuguesas. Ficamos à espera do tomo seguinte. Para esse, atrevo-me a sugerir a Niksiko, uma pilsner montenegrina com travo checo, e a cerveja da Browarmia, especialmente a weiss e a pilsner.
Hoje, o circuito da cerveja vai até à Deli Delux para uma prova onde estarão a Het Kapittel (mas em habituando o paladar a essa ligeira névoa que paira no copo, dançando como ondas de luz, estamos perdidos, FJV) e a Grimbergen Dubbel, entre outras.

Carlos Miguel Fernandes

Monday, April 24, 2006

Outra Refeição

O aroma do refogado de tomate e cebola devolveu-o ao mundo suportável. Vinha de uma casa de pasto para a qual se descia por uma escada de cimento construída entre as pedras que delineavam o cais. Viu caçarolas fumegantes cheias de mexilhões à marinheira. Eram horas e um magnífico local para tirar a barriga de misérias.
Manuel Vázquez Montalbán, Tatuagem

Havia chegado a altura de nos atirarmos aos tesouros trazidos das recentes visitas a Barcelona e à Deli Delux. Para isso, era necessário preparar uma refeição que enquadrasse os petiscos e procurar bebidas adequadas. Finalmente, neste fim-de-semana, o evento concretizou-se. Tudo começou com uns burriés e uns berbigões inesperados, que, mesmo estando frescos, só confirmaram a dificuldade em arranjar marisco de boa qualidade em Lisboa. Interessantes, os bichos, mas olvidáveis. Depois, veio o céu. Preparou-se uma tábua de queijos com o Tartufo e o Scarmoza da Deli, com um manchego fumado comprado numa rua do bairro Gótico de Barcelona, e com um queijo de cabra coberto com paprica, adquirido no mesmo local. Queijo de ovelha e cabra, como se quer num tábua decente, com o toque gracioso do leite de búfala do Scarmoza (ficou guardado um Azeitão, para outra ocasião). Perfeito. O Tartufo e o Scarmoza (este último provado pela primeira vez) são queijos de qualidade suprema, donos de sabores complexos e delicados. Emocionam qualquer apreciador de queijos, e têm potencial para converter os mais cépticos. Os dois queijos espanhóis, sendo exemplares de outra categoria, lutaram mesmo assim galhardamente, conquistando a aprovação de todos os que estavam à mesa. O de cabra parece vir de uma produção pouco industrializada, e dificilmente será encontrado por quem ler estas linhas se não viajar até à Catalunha. Mas aqui fica o nome, para quem quiser registar: La Pastora d’Olo. A escolha do vinho para acompanhar a tábua incidiu em França, pois nestas coisas da mesa, é país que sabe o que faz. Foi um magnífico Châteauneuf-du-Pape (Soleil et Festins) de 2001, comprado na Deli Delux, que nos acompanhou durante a aventura queijeira.
Logo a seguir passou-se para a secção dos fumados. Lomo Ibérico trazido de Sevilha, e Fuet e ovas de maruca de Barcelona, demonstraram mais uma vez que , do outro lado da fronteira, não se brinca com os embutidos e os ahumados. Para completar a secção dos petiscos, vieram as gambas, tratadas de duas forma distintas: ao alhinho, e com sambal (Udang Goreng), à maneira indonésia.
Depois começaram os pratos, que me abstenho de comentar, pois só critico obra alheia:
- Carapaus alimados com pasta de azeitonas, alcaparras e anchovas, aveludado de batata doce, pimentos assados (com azeite da Herdade de Manantiz) e camarão do Árctico;
- Favas com línguas de bacalhau e amêijoas, e bacalhau confitado com cogumelos salteados e gamba com gengibre;
- Raia sobre pão catalão, com espetadinha de camarão e açorda de ovas de bacalhau;
- Costeletas de pato com mel, e fettuccine de castanha com marisco;
- Sorvete de lima e hortelã, camembert no forno e bananas fritas;

Acompanhou-se a refeição com alvarinho Deu La deu, cerveja Hoegaarden e Franciskaner, consoante o prato na mesa. Os últimos dois pratos não resultaram naquilo que fora previamente planeado, devido ao cansaço e às muitas horas de mesa que já começavam a pesar. Faltaram, principalmente, o risotto de cogumelos para acompanhar o pato, e alguns pormenores à sobremesa, que lhe dariam outras cores e cheiros.
Não comento os resultados, mas prometo revelar algumas receitas no blogue Na Cozinha. Quero só acrescentar que o sorvete de lima e hortelã, quando agregado a um pouco de cachaça, resulta num excelente estabilizador de palato, situando-se algures entre a caipirinha e o mojito.

(Este texto é publicado simultaneamente nos blogues No Mundo e Na Cozinha)

Carlos Miguel Fernandes

Thursday, April 13, 2006

Uma Refeição (3), Foie Gras Frito na Própria Gordura com Compota de Maçã, Presunto de Pato Crocante e Mandioca

A vedeta deste prato é o foie gras fresco. O fígado engordado de pato ou de ganso abriga um dos sabores mais egrégios que se pode ter à mesa. É quase sempre associado à cozinha francesa, mas há muito tempo que faz parte do receituário tradicional da Hungria (um dos grandes produtores de fígado de ganso), e já entrou definitivamente na nova cozinha espanhola. Por cá, começa a ver-se com alguma frequência nas ementas dos melhores restaurantes, mas, infelizmente, não se encontra facilmente nos mercados ou noutras lojas (que saudades dos fígados amontoados nas montras do Mercado Central de Budapeste). Por isso, os pequenos boiões com os fígados cozidos e em conserva, que se podem comprar nas melhores charcutarias e que mantêm o sabor quase inalterável, são uma boa alternativa. Se quiserem, também podem substituir o foie gras por fígados de pato comuns, que não passaram pelo processo de engorda. Esta é, contudo, opção de ensaio, à qual falta a arrebatamento que se desprende do produto genuíno, e que transforma uma entrada interessante num manjar de reis. Quem optar pelos fígados normais tem apenas que adicionar um pouco de gordura na altura de fritar as iscas.
O prato exige alguns tachos e mão rápida para que nada arrefeça. Deve começar-se pela compota porque esta demora alguns minutos a apurar os seus sabores. Para quatro pessoas, cortam-se duas maçãs (sem casca) em pedaços que se salteiam em cerca de 75 g de manteiga a ferver. Juntam-se duas colheres de açúcar mascavado, uma colher de sobremesa de casca de laranja cortada em juliana e meia dúzia de uvas cortadas ao meio, sem pele nem grainhas. Rega-se com uma ou duas golfadas de Vinho do Porto e deixa-se cozinhar em lume brando (se o molho começar a rarear pode acrescentar-se mais manteiga).
Enquanto a maçã fica no fogo, cortam-se quatro fatias de foie gras com um a dois centímetros de espessura. Polvilham-se com um pouco de flor de sal e, num tacho anti-aderente, sem usar nenhuma gordura para além daquela que é libertada pelo fígado, fritam-se as fatias durante cerca de um minuto de cada um dos lados, ou até ficarem estaladiças por fora (sem queimar). Se se conseguir esse efeito, e se o interior se mantiver mole, está atingida a perfeição do foie gras. (Nesta altura, convém verificar a compota. A maçã deve ficar mole, mas sem se desfazer. Desligue-se o fogo antes disso acontecer.)
O presunto de pato — que se consegue adquirir, fatiado, em quase todos os hipermercados — deve ser frito em azeite muito quente, durante dois ou três minutos, até ficar crocante. Para terminar cortam-se quatro lascas de mandioca, que se fritam em óleo de amendoim. (Pode usar-se o azeite do pato para fritar a mandioca. Contudo, prefiro o óleo de amendoim porque este não acrescenta sabores aos alimentos. O azeite, por outro lado, liga-se bem ao presunto de pato. Aliás, o azeite acompanha bem qualquer produto fumado.)
No empratamento, coloca-se a compota no centro, sobre a qual se estende a isca de foie gras, em primeiro lugar, e o presunto de pato, por cima de tudo. Ao lado, encosta-se a mandioca. Pode ainda polvilhar-se o conjunto com algumas frutas secas (pinhões e castanha caju partida), e, ao lado, fazer um risco de Vinho do Porto reduzido.

Carlos Miguel Fernandes

Monday, March 06, 2006

Uma Refeição (2), Fritura Oriental

Esta etapa da refeição pode ser servida logo a seguir à sopa de peixe. Nesse caso, por pessoa, coloca-se um frito de cada tipo num prato pequeno, com cunhas de lima e fios de cebolinho, e, ao lado, dispõem-se pequenos recipientes com os molhos (descritos em baixo). No entanto, a fritura pode ser interpretada de outra forma, deixando-a ao abandono pela mesa, à disposição dos convidados, enquanto se saboreia a sopa (em tempos mais quentes, substitui-se a sopa de peixe por gaspacho, e temos uma alternativa exótica à prática habitual de acompanhar o riquíssimo caldo mediterrânico com peixe frito).
Mas, de que fritura falamos? Falamos de vegetais, cereais, carne e peixe. Fritos de milho, almôndegas condimentadas e pastéis de corvina. Os dois primeiros são interpretações literais de receitas tradicionais da Indonésia, Perkedel Jagung e Rempah Daging. Os pastéis de corvina são uma criação original, baseada num receita coreana chamada Saengson Yach’aejon, no entanto (como perceberão se experimentarem estas receitas) estas têm um carácter muito semelhante ao dos fritos indonésios. Passemos às instruções.

Fritos de milho: Misturam-se cerca de 300 gramas de milho cozido (pode ser enlatado, desde que bem escorrido), uma malagueta pequena sem sementes e picada, três chalotas cortadas às rodelas (pode substituir-se as chalotas por cebolinho ), uma pitada de sal, um ovo e duas colheres de sopa de farinha peneirada. Mexer tudo até obter uma massa consistente, sem triturar o milho. Moldar pequenos pastéis, com duas colheres de sopa, e fritá-los em óleo de amendoim bem quente, virando-os duas ou três vezes, até ficarem dourados.

Almôndegas condimentadas: Triturar duas chalotas (cebolas também serve), dois dentes de alho, uma colher de chá de cominhos e uma colher de chá de coentros moídos. Misturar a pasta daí resultante com 300 gramas de carne picada (triturada duas ou três vezes), duas colheres de sopa de pão ralado, uma gema de ovo, duas colheres de chá de sambal oelek* e uma colher de sopa de molho de soja. Mexer tudo muito bem, e fazer pequenas bolas de carne com as mãos. Fritam-se as almôndegas durante cerca de cinco minutos em óleo de amendoim.

Pastéis de corvina: Começa-se por desfazer uma posta de corvina, retirando-lhe antes a pele e as espinhas. À pasta daí resultante junta-se meia dúzia de camarões (100/120) cortados em pequenos pedaços e um ovo. Adicionam-se dois dentes de alho, duas colheres de sopa de gengibre fresco, duas colheres de sopa de cenoura e uma colher de sopa de coentros frescos, tudo muito bem picado, mas não tanto que se deixe de sentir a textura dos ingredientes após a fritura. Tempera-se tudo com sal e pimenta, junta-se-lhe uma colher de sopa de óleo de sésamo e outra de vinho de arroz, e moldam-se pequenos pastéis. Estão prontos para o óleo de amendoim.

Sugestões para molhos: 1) Molho indonésio: uma colher de sopa de ketjap manis**, duas colheres de sopa de molho de soja e meia colher de chá de sambal oelek; 2) Molho coreano: duas colheres de sopa de molho de soja, duas colheres de sopa de vinagre de arroz, uma colher de chá de sementes de sésamo e uma pitada de açúcar; 3) Molho “japonês”: duas colheres de sopa de molho de soja, uma colher de sopa de vinho de arroz, uma colher de chá de cebolinho picado e uma pitada de wasabi*** (ao lado, à disposição do conviva, pois este ingrediente é muito forte para a maior parte das bocas).
Num registo mais prosaico, pode-se acompanhar a Fritura Oriental apenas com molho de soja e molho de amendoim.

Bebida: Quem preferir utilizar os fritos para acompanhar a sopa fica bem servido com o vinho branco. A opção por um prato independente talvez peça uma cerveja forte, de sabor intenso e ligeiramente amargo. Sugiro uma cerveja de milho. Pode ser uma weizenbier - Paulaner ou Franziskaner (Hefe), por exemplo -, ou uma witbier - a Hoegaarden. Juntar uma rodela de limão à cerveja, a qual deve ser convenientemente despejada num copo adequado.

*Sambal Oelek: Ingrediente tradicional da cozinha indonésia que consiste numa pasta muito picante. Não parece ser fácil encontrá-lo em Portugal, mas umas malaguetas e alguma imaginação talvez o consigam substituir.
**Ketjap Manis: Outro ingrediente indonésio que não tenho encontrado em Portugal, ficando assim dependente de viagens ao estrangeiro. No entanto, sendo essencialmente um molho de soja doce, a sua ausência não é motivo para desalento.
***Wasabi: É uma espécie de mostarda muito utilizada na cozinha japonesa. Existe em pasta e em pó, e encontra-se facilmente em Portugal.

Carlos Miguel Fernandes

Saturday, February 25, 2006

Uma Refeição (1), Sopa dos Pescadores Húngaros com Camarão

Existe um pequeno livro de receitas espalhado pelos inúmeros quiosques improvisados das ruas de Budapeste mais concorridas. Chama-se Gundel’s Hungarian Cookbook (versão inglesa), e na capa, a autoria é atribuída a Karoly Gundel, criador do mais conhecido restaurante da capital húngara. No entanto, leitura mais atenta leva-nos até aos nomes de Karóly Márk, János Rákóczi e Elek Rehberger, antigos chefes dos restaurantes Crown Prince István, Hottel Gellert e Gundel, todos geridos por Károly Gundel. O livro é rigoroso, nas descrições e nas quantidades dos ingredientes, e mostra a forma como os três mestres interpretaram o receituário húngaro.
Na secção das sopas encontramos a Halászlé, a sopa dos pescadores. É feita com dois quilos de carpa e muitos legumes. Aqui apresentamos uma versão mais leve e mais rica, que pode entrar numa refeição extensa.
Como diz o texto do livro, o segredo desta sopa está no caldo. Este faz-se de um litro de água, espinhas, pele e cabeça do peixe, uma cebola grande, um pimento verde, um pimento vermelho e um tomate. Ferve-se durante uma hora. Entretanto, coze-se uma dúzia de camarões (médios, 60/80 é suficiente) em meio litro de água. Descascam-se os camarões, e guarda-se o miolo enquanto as cabeças e a água da cozedura se juntam ao caldo principal.
Após a hora de cozedura tritura-se tudo (cuidado com as espinhas). Pode-se coar, desde que haja o cuidado de não deixar o caldo pouco espesso. Coloca-se no lume novamente até ferver, e deitam-se duas colheres de sopa bem cheias de paprika (se o gosto dos convidados estiver para aí virado, pode usar-se paprika picante, muito comum nos mercados de Budapeste; mas, nesse caso, duas colheres pode ser exagerado). Junta-se trezentos gramas de peixe (perca ou carpa, sem espinhas nem pele, as quais já deverão ter sido retiradas do peixe e usadas no caldo), e coze-se durante dez minutos. Desfaz-se o peixe com um garfo, junta-se o miolo do camarão. As quantidades descritas servem quatro a seis pessoas. Duas conchas de sopa para cada pessoa, no máximo, pois a refeição ainda vai no adro.
Bebida: vinho branco.

Carlos Miguel Fernandes