Wednesday, May 30, 2007

Ovas de Polvo Secas

Esta beleza que se vê aqui na imagem chegou há poucos dias vinda do Algarve, acompanhada por mais sete espécimens. São ovas de polvo secas. É um dos melhores petiscos do mundo, mas em Portugal poucos o conhecem, muito provavelmente devido ao desapego do resto do país em relação à cozinha algarvia. Vou tentar, desta humilde posição, dar outra fama àquela que, como já referi neste espaço, julgo ser a gastronomia regional mais interessante de Portugal. No próximo Verão os meus esforços culinários dirigir-se-ão no sentido de recriar os pratos do Algarve, dar-lhes roupas alternativas, e descobrir novas combinações de sabores. É tarefa árdua para o carácter amador da minha cozinha e um desejo que pode até ser confundido com uma certa arrogância. Mas é uma ambição que nasce de um genuíno interesse na gastronomia algarvia. Comecei o exercício no passado fim-de-semana com uns camarões em molho de tomate e pão com azeite, alho e sumo de laranja, prato inspirado nas sardinhas em molho de tomate e na tiborna. A próxima entrada deste blogue descreverá o processo (que não atingiu ainda os objectivos pretendidos).
Para já sugiro uma visita a Olhão e uma busca incessante pelas ovas de polvo secas. Se a demanda se revelar custosa, perguntem aos peixeiros pelos produtos que por vezes escondem debaixo do balcão (é para onde esta iguaria está muitas vezes remetida, talvez pelos ditadorzinhos de Bruxelas). Quando finalmente estiverem com uma ova nas mãos, tostem-na no carvão, ou até mesmo no bico de um fogão. Raspem a cinza, cortem a ova em fatias finas e acompanhem com uma cerveja bem gelada. Sem invenções.

Carlos Miguel Fernandes

Tuesday, May 22, 2007

À Mesa do Mundo - V (Ainda o Altair)

Nunca cheguei a falar do regresso ao Altair de Mérida, mas tal não se deveu a alguma desilusão com o restaurante que já havia visitado em 2003. Nada disso! A refeição foi soberba, e deixou marcas ainda mais agradáveis do que a primeira visita. Mas algo correu mal com as fotografias, e o bloco de notas foi fechado a meio do jantar, pois estava-se ali para gozar os sofisticados sabores extremeños do Altair, e não para trabalhar. Fiquei sem material para uma crónica decente, mas ainda recordo com grande prazer o delicioso ovo escalfado com espargos e leite de cabra fermentado, um arroz negro perfeito, o bacalhau com trufas, e o coelho que se apresentou num ponto de assadura prodigioso. Muito mais haveria para dizer, se as notas estivessem completas. A descrição de um “menu degustação” com a extensão e diversidade daquele que nos é oferecido pelo Altair não pode ser abandonada aos humores da memória.

Carlos Miguel Fernandes, Mérida

Como a dimensão do menu não facilitava a escolha do vinho (para além isso, nem sabíamos metade do ali vinha!), optou-se pelo Martin Codax de 2005. Não se esperavam combinações gloriosas com a comida, mas pelo menos não estragou nenhum prato. Com as sobremesas foi-nos oferecido um Pedro Ximenez que se antecipou ao Tokaj que nos preparávamos para pedir (sim, havia Tokaj, vinho húngaro, na lista). Não veio daí nenhum mal ao remate da refeição. O Pedro Ximenez, como se esperava, cumpriu bem a função, e foi a companhia ideal para a última etapa de mais um inesquecível jantar no Altair.

Carlos Miguel Fernandes

Friday, May 04, 2007

Livros do Mundo II (Cozinha Algarvia)

Francisco Piedade — Hoje não resisto a ler uma parte de um texto delicioso sobre um velho pescador de Ferragudo.
Renato Costa — Estou de acordo. Avança!
FP — O texto foi escrito em 1921, já lá vão uns anitos. Começa assim: ”pois nesta aldeia jantei ontem, às horas calmas do sol-posto, com Robalo, um velho pescador. Uma sopa de sardinha, dourados salmonetes, vinho velho de Alvor, uvas brancas e figos inchários, dos que têm pele negra e polpa rosada, doces como o mel. Depois, entre uma velha e aromática medronheira da serra e alguns cigarros de onça, ali estivemos a recordar o passado, os que tinham morrido, os que se tinham ausentado para a Terra Nova e, por fim, aquela velha história dos piratas em que robalo, o pescador, conta coisas dos tempos em que fizera contrabando de açúcar e tabaco, entre Marrocos e Olhão."

O livro chama-se Bocaboca — Segredos da Gastronomia Algarvia e dá-nos as transcrições das conversas entre Francisco Piedade e Renato Costa transmitidas na Antena 1, no programa Portugal Directo. O diálogo estabelece-se sob o mote da cozinha algarvia, a qual é, na minha humilde opinião, a mais interessante e diversificada do país. Infelizmente é também a mais ignorada, mas o livro Bocaboca, no qual tropecei há cerca de um ano numa livraria de Lisboa, pode servir de intróito aos encantadores petiscos do sul. Nas conversas, seccionadas por temas, toca-se nas raízes e nas influências árabe e romana, fala-se do peso do peixe e da carne na dieta algarvia, e abordam-se algumas especialidades da zona, quase desconhecidas no resto do país, como o xerém, a moxama de atum, os carapaus alimados e o extraordinário polvo de Santa Luzia. O medronho, como não podia deixar de ser, toca várias conversas, e o gaspacho, esse milagre alimentar tão bem acarinhado em Espanha e tão esquecido por cá, tem honras de conversa própria.
Bocaboca lê-se de um fôlego, e talvez mostre, a quem lhe passar os olhos por cima, por que razão defendo a gastronomia algarvia como a mais promissora base para uma nova cozinha, baseada nos saberes e sabores regionais, mas completada com novas técnicas e combinações inovadoras de texturas e paladares, tal como desde há uns anos se tem feito no país vizinho com resultados deslumbrantes. Será que vão ser os cozinheiros espanhóis os primeiros a (re)descobrir a cozinha algarvia? (Não quero ser injusto com Luís Suspiro, por isso não deixar de referir que o mestre do Condestável e do Na Ordem com... foi buscar ao Algarve a inspiração para algumas das suas melhores obras.)
No final de cada capítulo de Bocaboca os autores oferecem-nos uma ou mais receitas relacionadas com a conversa anterior. Aqui ficam as instruções da Estupeta de Atum de Tavira:

Ripe à mão 750 gramas de atum salgado e passe três vezes por água fria para extrair bem o seu sal.
Esprema muito bem e prove para se certificar se já perdeu o sal.
Deite o atum numa taça e adicione duas cebolas médias picadas, dois pimentos verdes e meio quilo de tomates pouco maduros cortados aos cubos.
Tempere com um bom azeite e vinagre.
Decore com azeitonas pretas.

Simples, não é?

Carlos Miguel Fernandes