Monday, November 07, 2005

Moelas de Pato com Paprica

Esta receita situa-se algures entre as moelas guisadas das tascas portuguesas e as receitas de fígados (de porco, galinha ou pato) da Hungria. Podemos atirar-nos a ela com miúdos de galinha mas é com as entranhas do pato que marca a diferença. As moelas do marreco podem ser substituídas pelos fígados com resultados excelentes. Estes, no entanto, exigem um maior cuidado na panela, pois cozem muito mais depressa e desfazem-se sem avisar. Uma mistura das duas carnes obriga a cautelas ainda maiores com os tempos de cozedura.
As moelas do pato não se arranjam com facilidade. Raramente se encontram nos hipermercados, e muito menos nos supermercados. Por isso, encomendá-las num talho vizinho talvez seja a melhor solução. Quando chegarem às mãos do cozinheiro, o passo mais complicado da receita estará ultrapassado. O resto, é técnica de refogado e alguma paciência.
Cortam-se duas cebolas grandes em rodelas e fritam-se em três ou quatro colheres de bom azeite. (Podem juntar-se algumas cabeças de alho esmagadas.) Quando a cebola estiver mole e loura atira-se para o lume um quilo de moelas previamente cortadas em quatro ou mais partes (as moelas inteiras podem demorar uma eternidade a cozer) e polvilhadas com sal grosso. Deixa-se fritar um pouco e acrescenta-se meio quilo de tomate maduro pelado e esmagado. E, não arranjando tomate de qualidade, não vale a pena ter escrúpulos com as latas.
Depois de deixar as moelas a cozer no tomate durante dez minutos rega-se tudo com 250 ml de vinho tinto. Nessa altura pode ser feita a primeira rectificação de temperos, com sal e pimenta. Um pouco de tomilho não fica nada mal e uma ou duas colheres de açúcar mascavado podem ajudar a diminuir a acidez do tomate. Depois, são cerca de duas horas a cozer em lume brando, sendo a primeira com a panela destapada. Quando as moelas estiverem tenras no dente, polvilha-se tudo com quatro colheres de paprica, mexe-se um pouco, e apaga-se o lume. A paprica não gosta de ferver e, embora o sabor amargo surja com mais facilidade numa fritura em óleo, é melhor não abusar. Ah, e paprica comprada no Mercado Central de Budapeste sabe sempre melhor! Aí, encontrarão paprica picante, a ideal para quem suporta com garbo as diabruras do gindungo, piri-piri e afins.
Na mesa, as moelas de pato servem-se como petisco, acompanhadas por generosas fatias de pão e uma cerveja forte (uma weizenbier cumpre bem a função) Também podem ser incluídas num trio de luxo, uma entrada para verdadeiros apreciadores de pato: moelas, fígados temperados com cachaça e fritos em óleo de amendoim e peito marinado em mel e vinho branco, fatiado e entremeado com presunto crocante. Tudo de pato, até o presunto. No meio, maçã para aumentar a complexidade dos sabores. Mas isso são outras histórias.

Carlos Miguel Fernandes

Monday, October 24, 2005

Cevapcici

Fazer cevapcici em casa serve apenas para acalmar a nostalgia dos sítios onde eles sabem melhor: nas cervejarias de Belgrado, acompanhados pelas fabulosas pilsner da Sérvia, ou nas festas de rua balcânicas, onde disputam, com as sardinhas, febras e espetadas, o melhores lugares sobre as brasas. Uma dessas festas realiza-se todos os anos no último fim-de-semana de Agosto em Lubliana, capital da Eslovénia. Folclore da Europa Central, música Klezhmer, sardinhas assadas e panadas, gyricei e cevapcici juntam-se para um dos momentos altos do verão europeu.
Não é fácil reproduzir o sabor dos pequenos rolos. O petisco presta-se a diversas receitas que variam na matéria e no tempero utilizados. A carne pode ser de porco, vaca ou borrego, ou mesmo uma mistura das três. (Os especialistas mais exigentes, no entanto, sugerem que a carne de vaca deve vir de quatro partes distintas do bicho.) Depois de muito bem picada (três ou quatro vezes), junta-se o tempero e moldam-se rolos do tamanho de um polegar. Aqui podem surgir algumas dificuldades, pois a massa daí resultante pode ficar solta, o que complicará a tarefa de os grelhar, especialmente se tal for feito num fogão. Alguns livros sugerem o uso de um saco de pasteleiro, técnica que não comento porque nunca tentei utilizar.



Carlos Miguel Fernandes, Belgrado, Setembro de 2005

Na versão mais simples da receita, a carne é temperada apenas com sal e pimenta, mas encontram-se frequentemente referências a paprika, alho picado e ovo, combinação que resulta em cepapcici muito recomendáveis. O tempero recebe bem outros ingredientes, e é um desafio à imaginação e à experimentação.
Depois de prontos, os rolos podem ir para uma chapa quente ou para o forno, mas é no carvão que eles se portam melhor. E quando são previamente abafados por uma fina fatia de toucinho - como vi fazer nalguns restaurantes da Sérvia - a degustação pode tornar-se num caso sério de gula.
O acompanhamento tradicional consiste em cebola picada, conquanto o ajvar cumpra muito bem o papel. Na Sérvia, algumas casas servem uma variante deliciosa, na qual a cebola é substituída por kajmak (lê-se kaimak, tal como ajvar se lê aivar). Infelizmente, descobrir, em Portugal, o queijo suave e amanteigado que anima as mesas sérvias antes das refeições é tarefa difícil, talvez mesmo impossível.

Carlos Miguel Fernandes

Monday, August 22, 2005

Ajvar

É fácil. Assam-se três pimentos (prefiro vermelhos) e uma beringela. Retiram-se a pele e as sementes, e tritura-se tudo com um dente de alho, sal e pimenta. Juntam-se umas gotas de limão ou um pouco de vinagre, e tanto azeite quanto os vegetais consigam absorver. Na Sérvia, de onde esta receita vem, o azeite não abunda, e usar-se-ão, com certeza, outros óleos. Mas, se o temos, usemo-lo.
Serve-se frio. No receituário sérvio aparece na secção das saladas, logo, como manda a tradição local, antecede o prato principal. Nas refeições balcânicas a salada é omnipresente, e esse facto deveria ser uma lição para os habitantes deste país de (esquecidas) tradições mediterrânicas.
Mas, para além do carácter “entradeiro”, o ajvar pode ter outras funções. Uma, que não lhe fica nada mal, consiste em servir de molho para mergulhar os, também sérvios, cevapcici. O que são? Fica para a próxima!


Carlos Miguel Fernandes

Tuesday, August 16, 2005

Dois molhos para o Verão

O Tzatziki vem da Grécia e os seus sabores e aromas mediterrânicos são facilmente reconhecidos por quem aprecia a gastronomia dos povos banhados pelo mar cálido. É feito de iogurte natural previamente coado (para quatro pessoas, quatrocentos gramas é suficiente), ao qual se juntam três colheres de sopa de pepino picado, sem sementes, e duas ou três cabeças de alho (muito bem) picadas. Tempera-se com sal e pimenta preta moída na altura, adiciona-se um fio de azeite e algumas gotas de sumo de limão. Está pronto para ser servido depois de estagiar no frigorífico até alcançar a frescura desejada. Come-se com bolachas, tostas ou pão pita. Como acontece com a maior parte das receitas tradicionais, existem inúmeras variantes e as quantidades podem ser adaptadas ao gosto dos que se sentam à mesa.
O Guacamole é de origem mexicana e sustenta o seu sabor exótico no abacate. Este, após ter sido aliviado da casca e da pele, deve ser esmagado até apresentar uma consistência pastosa. Para quatro pessoas pode-se começar com dois abacates. Depois, juntam-se dois tomates pequenos e maduros bem triturados e uma cebola picada. Deita-se uma macheia de coentros picados e mexe-se até os ingredientes mostrarem uma distribuição uniforme. Junta-se tabasco, com ou sem moderação, e um pouco de sumo de lima. Serve-se com totopos, cumprindo a tradição. Os nachos não fazem parte do receituário mexicano, são uma invenção norte-americana. Mas também servem.


Carlos Miguel Fernandes

Thursday, August 11, 2005

O Gaspacho
(texto escrito para o blogue No Mundo no dia 2 de junho de 2005)
Nos últimos dias tenho tropeçado num pequeno filme publicitário que pretende mostrar as virtudes de mais um produto de uma conhecida empresa multinacional que se movimenta no ramo da alimentação. O alvo, desta vez, é a cozinha mediterrânica. Sabendo que esta não vive sem diversidade, produtos frescos e espaços abertos, não é possível reagir a tal desrespeito pela inteligência do consumidor sem um sorriso de escárnio. Um produto industrial, consumido em espaços fechados e assépticos, como representante da cozinha mediterrânica!? Patético. Mas, enfim, deixemos mais este disparate e concentremo-nos na verdadeira gastronomia do sul europeu. Troquemos a proposta ignara e aproveitemos os dias de calor para apreciar o ilustre gaspacho andaluz.
O gaspacho não é prato estranho à gastronomia portuguesa. Encontra-se no Alentejo e no Algarve com os legumes toscamente cortados - na maior parte dos casos - ou triturados, num estilo que está mais associado ao sul de Espanha. Nenhuma das versões se pode vangloriar de ter o sabor mais sedutor. Ambas se recomendam. Escolhi a receita andaluza para homenagear a cozinha da região, que é, sem dúvida, uma das melhores do mundo, embora seja, incompreensivelmente, pouco conhecida em Portugal (nem vale a pena falar das manifestações habituais de repúdio pela gastronomia espanhola; estas, apenas revelam uma qualquer espécie de demência crónica).
Junta-se, num recipiente largo e alto, um quilo de tomate, um pimento verde, meio pepino, uma cebola, três ou quatro cabeças de alho, uma fatia de pão, uma chávena de azeite, meia chávena de vinagre, uma colher de chá de colorau, uma colher de sopa de orégãos, sal, pimenta e cominhos (aconselho cominhos negros, uma variante mais suave da semente, a qual descobri recentemente num mercado turco de Berlim). Os mais obcecados com a forma da cintura podem ignorar o pão, pois tal variante não resulta menos atractiva. Tritura-se tudo até se obter uma pasta uniforme, sem medo de recorrer a auxiliares eléctricos para a tarefa. Junta-se cerca de um litro de água e mexe-se (a quantidade de água apenas afecta a cremosidade do gaspacho; pode-se, por isso, colocar mais ou menos, consoante o resultado pretendido). Coloca-se no frigorífico durante algumas horas. Serve-se frio, com cubos de gelo.
Este prato sujeita-se bem a variações nas quantidades, e até aceita sem reservas a introdução de novos ingredientes. No livro do qual foi retirada a base desta proposta, podem ver-se oito receitas diferentes de gaspacho, onde entram, para além dos ingredientes mencionados em cima, ovos, amêndoas, e até beterraba.
O gaspacho é um ícone da gastronomia mediterrânica. É uma fonte de prazer e frescura nestes dias quentes que prenunciam o verão. É saboroso, é saudável e é barato. Foram estas características que lhe permitiram evoluir e sobreviver numa região pobre, cujos habitantes sempre aproveitaram, de uma forma criativa, aquilo que a terra lhes dá.

Carlos Miguel Fernandes