À Mesa do Mundo – III (Altair)
(A poucos dias de regressar ao Altair de Mérida, deixo aqui, com pequenas revisões, o texto escrito e publicado no No Mundo há cerca de três anos, sobre a primeira visita ao excelente restaurante extremeño.)
Mérida, fundada em 25 a.C., cresceu à beira do Guadiana e tornou-se na próspera capital da província romana da Lusitânia. As ruínas romanas são o orgulho da cidade: o anfiteatro, o teatro, o hipódromo, o Arco de Trajano, o aqueduto, a ponte que atravessa o Guadiana e possíveis tesouros ainda escondidos, tornaram Mérida num paraíso para os arqueólogos e uma surpresa para aqueles que pasmam diante das demonstrações da força do engenho humano. O anfiteatro, em particular, é admirável na imponência que ainda hoje, em ruínas, nos assombra. E a luz azulada que, naquela tarde de inverno, as suas colunas de mármore reflectiam, transmitia a serenidade que nos costuma assaltar quando a fragilidade da existência é posta em evidência diante da dimensão temporal da civilização humana.
Estávamos em Espanha, e em Espanha a liberdade de escolha do adepto de jantares sem horas marcadas é maior. Por isso, entrámos no Altair, sito na Avenida José Fernández Lopez, junto ao rio Guadiana, por volta das vinte e duas e trinta, e lá ficámos nas três horas seguintes. As propostas da carta não desmereciam a nossa atenção, mas optou-se pelo menu degustação que, embora servido apenas para mesas completas — quatro pessoas — segundo indicação da carta, foi gentilmente confeccionado para o nosso pequeno grupo de três convivas. Para a abertura foi requisitada a presença do Bombay Saphire, versão 47% de álcool, acompanhado com água tónica. Não, não é apenas um capricho etílico. De acordo com textos por nós consultados há alguns anos, e dos quais não temos registo, só uma alta percentagem de álcool permite a libertação de todos os sabores e aromas contidos num gim. A menor percentagem de álcool de outras versões é determinada pelos impostos. Ainda do departamento espirituoso, mas já com a carta de vinhos aberta, seleccionámos o Rioja Vina Salceda Crianza, de 1999, para nos acompanhar durante a refeição. É, aliás, o conjunto de vinhos da região de Rioja que se encontra maioritariamente representado nesta carta de vinhos dividida por regiões e com umas generosas dezenas de exemplares.
O menu degustação é composto por uma entrada, uma sopa, um prato de carne, um prato de peixe e uma sobremesa. É, no entanto, tradição da casa oferecer uma pequena introdução ao festival que se avizinha. Começou-se com um creme de cenoura com uvas acolitado por uma pequena malga com miolo de berbigão inserto em cubo de gelatina, conjunto que satisfez o palato, eliminando qualquer cepticismo que ainda nos pudesse incomodar, e preparou o terreno para o deslumbramento que estava para vir. Os espargos com ovo escalfado e endívias estavam perfeitos; o tratamento dado ao ovo, de uma simplicidade desarmante, só está ao alcance de grandes mestres. O caldo de beterraba com lulas, embora correctíssimo e de sabor inatacável, não foi capaz de atingir os níveis de prazer proporcionados pelo resto da refeição. Logo a seguir, o lombo de robalo salteado, com batata assada no forno, portou-se como a sua frescura o exigia: exemplarmente. O auge, o zénite, o acme da refeição no restaurante Altair estava reservado para o ossobuco de cervo. A carne tenra, o tempero sem mácula e o tutano a despertar papilas que nunca haviam dado ao cérebro sinal da sua existência, tornaram as pequenas peças da perna do animal na estrela da noite.
A sobremesa prometida pelo menu, banana frita com creme de chocolate e gelado, foi antecedida por mais um regalo da casa: bolas de chocolate envolvidas por queijo de cabra e, provavelmente, com um pequena fritura em óleo muito quente. A combinação entre o chocolate e o queijo, perturbador para as mentes mais conservadoras, resultou numa experiência gastronómica inolvidável. Repeti-la exigirá paciência e prática, em casa, ou demanda, fora dela, dada a delicadeza exigida no tratamento deste conjunto de sabores. A refeição prolongou-se durante mais uma hora, entre cafés e orujo de ervas. O serviço de mesa, feminino e eficiente, foi, acima de tudo, discreto. Que mais se poderá exigir?
O Altair foi criado pelos proprietários do restaurante Atrio de Cáceres. Sabendo que o Atrio conquistou este ano a sua segunda estrela no guia Michelin, não é muito especulativo pensar que, daqui a alguns anos, a prestigiada instituição francesa poderá começar a premiar o esforço e o engenho dos responsáveis pelo Altair. Por enquanto, os seus dois anos de vida não lhe permitem a tanto almejar, pois a manutenção da alta bitola, durante anos, não é peso de somenos na avaliação dos exigentes inspectores Michelin.
Carlos Miguel Fernandes
P.S. Parece que o Altair ainda não conseguiu a sua estrela Michelin. Tendo em conta os estranhos critérios da instituição francesa, não é pormenor que (n)os deva preocupar.
1 comment:
Aprendi muito
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