Berlim
Carlos Miguel Fernandes, Berlim, Março de 2005
Antes de entrar na cozinha algarvia gostava de deixar aqui algumas notas sobre os sabores de Berlim, cidade que voltei a visitar no último fim-de-semana, numa viagem dolorosamente curta. Berlim tem incontáveis argumentos para seduzir o viajante mas a comida não é o mais forte (até porque os outros são imbatíveis). A gastronomia do Europa Central não pode rivalizar com a cozinha do sul, não tem o solo e o mar das costas mediterrânicas, nem a luz que convida à indolência. É verdade que hoje, em qualquer capital do mundo, se encontram óptimos restaurantes de cozinha criativa, produtos frescos e paleta extensa. Berlim não será excepção, mas comparo aqui a comida tradicional, e nesse registo a oferta diminui quando se sobe pela Europa acima. Mas a cidade tem bons argumentos gastronómicos, e o saldo acaba sempre por ser positivo.
Chegados a Berlim, deparamo-nos com duas hipóteses quando abordamos os restaurantes de nível médio. Ou divagamos pelas cozinhas do mundo, aproveitando a extraordinária oferta da capital berlinense, da qual se destacam as várias gastronomias do extremo-oriente, ou ficamo-nos pela comida de cervejaria, sem rasgos de génio, mas honesta e feita quase sempre com produtos de boa qualidade. Desta vez dirigimo-nos apenas ao segundo grupo e, como aconteceu nas visitas anteriores, não levámos mais do que a experiência adquirida. Em Berlim, sempre procurámos a comida pelo “cheiro”, sem guias ou dicas de terceiros (as ligações às páginas dos diversos lugares que descrevemos em baixo foram obtidas
a posteriori, excepto no que se refere àqueles que já conheciamos de outras viagens).
A tarefa é fácil. Basta entrar numa das muitas cervejaria da cidade, e no menu lá estarão a
carne de porco fumada, os arenques, as salsichas e o celebrado
eisbein, o joelho de porco cozido ou assado no forno. Posso sugerir alguns lugares. A cervejaria
Rocco, mesmo por baixo da paragem Hackescher Markt do S-Bahn, tem um ambiente imperial assente em madeira escura e pedra, e oferece porco gelatinado, porco fumado e arenque, entre outros pratos regionais misturados com uma menos interessante lista de pizas e pastas. No bairro de São Nicolau temos a
Georgbrau, casa onde se fabrica uma cerveja excepcional da qual falarei mais à frente, e de cuja a cozinha, aberta para a sala interior, saem
eisbein a um ritmo estonteante. Mas para comer o
eisbein tínhamos a
Standige Vertretung! O joelho de porco não se destaca nessa cervejaria, mas há tradições que fazemos questão de manter; a
Standige Vertretung é um espaço onde gostamos de passar algumas horas quando visitamos Berlim. Para terminar, devo referir que o acompanhamento das carnes nas cervejaria berlinenses não varia muito. O duo chucrute/batata domina, mas surpreende a qualidade da batata, cozida, gratinada ou assada no forno, mas raramente frita.
Se a comida das cervejarias de Berlim não espanta nem desilude, o mesmo não se pode dizer daquilo que dá nome e fama às casas: a cerveja! Para quem gosta de cerveja, uma visita a Berlim torna-se ainda mais recomendável. Desde as
pilsner locais até às
weisenbier (cerveja de trigo) que vêm do sul da Alemanha, a colecção é quase insuperável. A
Warsteiner, a
Jever, a
Berliner Kindl ou a
Kolsch são
pilsner de boa qualidade e encontram-se em todos os cantos de Berlim. As famosas
Paulaner e Franciskaner são
weisenbier que aparecem com regularidade, tal como a
Weihenstephan, cerveja que bebi pela primeira em Berlim, já lá vão mais de dois anos. Mas é nas cervejarias que encontramos as produções mais interessantes, cervejas que raramente saem das quatro paredes da casa mas que nos animam com sabores ricos e muito particulares. No último fim-de-semana tive o prazer de provar pela primeira vez as duas cervejas fabricadas na
Georgbrau do bairro São Nicolau. A
pilsner não decepcionou, mostrando aquela opacidade que distingue as
pilsner de fabrico caseiro das de distribuição massiva. Mas foi a
dunkel que nos fascinou, com o seu surpreendente cheiro e sabor a caramelo amargo (!). Entretanto, na cervejaria
Mommseneck, na zona da Potsdamer Platz, já havíamos provado no dia anterior a
Aecht Schlenkeria, a qual nos levou ao céu com seu travo a peixe fumado. Caramelo amargo e peixe fumado!? Isto parece conversa de enólogo de terceira categoria, mas logo que cheguei a Lisboa fui consultar o livro
99 cevejas+1 de
Francisco José Viegas, esperando lá encontrar a
Aecht. E lá estava ela, logo no início do inventário. Passemos a palavra ao Francisco José Viegas:
Portanto, trata-se de pôr as coisas em copos limpos: “cerveja fumada”, uma variante bávara, produzida em Bamberg, onde fica a histórica Schelenkerla, uma cervejaria notável. Afinal eu não estava louco nem possuído por algum espírito pedante. Havia mesmo um travo a fumado naquela cerveja negra. (No livro, a
Aecht é referida como tendo 6,5% de álcool, mas a minha garrafa só tinha 5,1%; gralha?)
Termino esta curta digressão com uma referência à
Barrique, uma discreta mercearia moderna (ou
gourmet, como agora se diz) que encontrei no número 27c da Reinhardtstrasse, uma rua perpendicular à Friedrichstrasse, já perto da Oranienburger Tor. A especialidade da casa são os sabores líquidos. Para além dos vinhos engarrafados, tem também azeite, vinagre, licores e aguardentes em barricas de vidro a partir das quais o simpático dono enche garrafinhas transparentes de 20 cl, nas quais depois escreve o nome do néctar. Há também algumas massas de boa qualidade, especiarias vendidas a peso e acessórios para o vinho, mas é na diversidade do espírito e do azeite que a casa parece dar cartas. De lá trouxemos um azeite aromatizado com trufas e uma selecção da imensa bancada de licores e aguardentes que dominava uma das paredes da
Barrique. O azeite já está reservado para uma moxama de atum que veio do Algarve. Vamos ver como se aguenta no confronto. Para as ovas de polvo secas a
Aecht Schlenkeria seria, provavelmente, a cerveja ideal. Onde poderemos encontrá-la?
A Barrique
Carlos Miguel Fernandes
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