Thursday, September 06, 2007

Cozinha Algarvia — Amêijoas da Ria de Alvor com Pão Algarvio

A ideia já me afagava o espírito há um par de meses. Era simples, pedia poucos ingredientes, e trinta minutos na cozinha bastariam para colocar no prato o que se ia formando na mente. Mas a simplicidade não implica desprezo pela matéria-prima, e, para esta receita, eu necessitava de dois itens que só no Sul consigo encontrar na plenitude dos seus atributos, pelo menos sem perder uma manhã de um lado para o outro com poucas garantias de arribar a casa de mãos cheias. Em Portimão consegui dar forma à cogitação.


As amêijoas vieram da ria de Alvor e brilho não lhes faltava. Continua a ser em Cacela-Velha que lhes encontro o grau supremo da formosura, pois todos os sentidos comem, mas eram magníficos estes bichos do Barlavento que me quase me alagavam a cozinha com as suas esguichadas. Abri quinze numa panela fechada sem qualquer gordura nem sal. Separei o miolo da concha e reservei o suco que ficou no fundo do tacho (o qual teria sido filtrado, se eu não estivesse em cozinha alheia, sem lhe conhecer os esconderijos). Cortei cinco paralelepípedos de excelente pão algarvio, com seis ou sete centímetros de comprimento, e torrei-os sem endurecer muito; o pão deve ficar crestado por fora e mole por dentro e a consistência do pão do Algarve, o melhor que se faz no país, facilita o processo. Ao lado já havia misturado a água largada pelas amêijoas com um pouco de azeite (uma parte de água para três de azeite). Adicionei ainda dois dentes de alho e um punhado de coentros, tudo muito bem picado. Não tinha almofariz e muito menos uma trituradora eléctrica, mas tentei, com uma colher, misturar os sabores. Barrei o pão com o azeite aromatizado, coloquei três amêijoas sobre cada tira, e reguei tudo com o resto do molho. (Nota: nem uma pitada de sal! O que vem com as amêijoas é mais do que suficiente.)

O resultado final esteve muito perto daquilo que desejava. Um prato comum com uma apresentação diferente, bom para o petisco descontraído, mas também adequado para um regime de degustação mais formal. Os sabores estavam bem vincados: a amêijoa suculenta, perfeita, e sem excesso de coentros; o pão a estalar, embebido num azeite que sabia a mar, com o toque agreste, conquanto essencial, do alho cru. Ah, temos ainda a açoteia, ingrediente incontornável, e que só encontrarão se rumarem para o extremo sul do país. O resto, ainda se pode disfarçar, com amêijoas do Sado ou pão “tipo alentejano”. Mas a açoteia algarvia e o cheiro a lodo não se imitam.


Carlos Miguel Fernandes

4 comments:

Elvira said...

Isso deve ser divinalmente bom. E que apresentação mais bonita! :-)

semente de sésamo said...

Eu adoro amêijoas e essas estão irresistíveis...

Mushroomdeluxe said...

Em fim-de-semana recente no Butoque, elegi um arroz de lingueirão... mas esta receita de amêijoas tb teria ficado muito bem.

Anonymous said...

Quando a matéria-prima é excelente, tudo fica bem, é só respeitar os bichos. Foi isso que aconteceu com este prato, as amêijoas eram perfeitas, gordas, com sabor a mar. Abri-as sem cozer muito, o que preservou os sabores todos da ria.

O arroz de lingueirão foi uma falha imperdoável nesta minha deslocação ao Algarve. Mas provei uns, com alho e azeite, fantásticos. No "Holandês dos Caracóis", em Portimão. Recomendo.