Carlos Miguel Fernandes, Seoul, 2001
Foi em 2001 que conheci esta cozinha cercada por gigantes (a gastronomia japonesa, as quatro grandes cozinhas chinesas, e as adocicadas iguarias da Indochina), mas de identidade forte e com argumentos para convencer qualquer apreciador da boa mesa. Em Seul são remotas as hipóteses de se conseguir escolher o que se pretende comer, e até de perceber o que existe para comer, especialmente quando deixamos para trás as zonas mais centrais (e mesmo aí, é rara a conversação em inglês que chega a bom porto). A escolha aleatória, muitas vezes feita de indicador apontado para indecifráveis caracteres na parede, é o único recurso disponível. E nos restaurantes mais modestos do centro (as tascas) a probabilidade de o pulgogi nos chegar às mãos é elevada. As mesas, com um grelhador no centro, já estão preparadas para assar as tiras de carne temperadas com molho de soja, alho, gengibre, cebolinho, e outros ingredientes que se encontram facilmente em qualquer supermercado oriental. No registo gastronómico, a estada em Seul foi dominada pelas carnes e pelo pulgogi. Houve deliciosas excepções, e recordo com particular saudade um excelente polvo acompanhado por myolchi pokkum (pequenos peixes, com cerca de dois centímetros, fritos), provado no restaurante do aeroporto, mesmo antes de embarcar para o triste regresso. Mas o pulgogi da cidade não enfada, antes pelo contrário. A miríade de acompanhamentos, sempre a rondar a meia dúzia, transformam qualquer refeição num festim de cores e sabores. Arroz branco, kimchi*, ovos, legumes com cozedura leve, uns fritos ocasionais, e outras ofertas, fazem de cada almoço ou jantar um momento de iniciação e experimentação. Depois de visitar Seul só voltei a contactar com a cozinha coreana num mediano restaurante de Budapeste e numa agradável casa de cozinha japonesa e coreana em Berlim. Em ambos os lugares os sabores foram minimamente recriados, mas a oferta era escassa. E faltava Seul, porque os prazeres da mesa não são imunes ao ar que os rodeia.
Agora preparo-me para ir mais longe. Depois de reviver as ruas de capital, vou meter-me na estrada para conhecer melhor a faceta marítima da cozinha coreana e perder-me no mercado de peixe de Busan, um colosso delirante rodeado por restaurantes especializados em marisco. Na província de Jeolla, uma região remota de costa acidentada e enfeitada por centenas de ilhas, espero provar os famosos polvos-bebé. E outras surpresas me esperam, certamente.
Despeço-me com a receita do pulgogi, o qual, como já se percebeu, não é mais do que um punhado de tiras de carne temperadas e grelhadas. A carne de vaca é a matéria-prima tradicional, mas já experimentei porco, peru, e até um peito de pato (ver imagem) que resultou num bom prato. Vamos às instruções.
A meio quilo de carne cortada em tiras pequenas junta-se uma colher de sopa (CS) de óleo de sésamo, uma CS de sal de sésamo**, três dentes de alho picados, uma colher de sobremesa de gengibre fresco e picado, duas CS de vinho de arroz, pimenta preta moída, cebolinho, duas CS de molho de soja e uma CS de açúcar (esta quantidade de açúcar não adocica o prato, serve apenas para equilibrar e compensar o sal excessivo do molho de soja; pode usar-se ketjap manis, o molho de soja da cozinha indonésia, menos salgado, e dispensar o açúcar). A mistura deve marinar durante hora e meia antes de ir para a grelha. Não é necessário mais tempo pois não se pretende que a carne absorva totalmente os sabores. Estes devem manter-se à superfície, respeitando o sabor original do bicho. O pulgogi não é estratégia para esconder uma matéria-prima fraca.
Esta é um amostra redutora da gastronomia da Coreia do Sul. O receituário é diversificado e vasto, e mostra-nos uma cozinha de mercado, onde a frescura, sabor e cor dos alimentos se combinam para nos oferecer banquetes de raiz plebeia mas de aspecto e delicadeza dignos de reis.
Carlos Miguel Fernandes
* Legumes fermentados e picantes. É normalmente feito com couve chinesa, e é omnipresente nas mesas coreanas. É um dos itens mais condimentados de uma cozinha respeitadora dos sabores originais dos alimentos.
** Obtém-se aquecendo um punhado de sementes de sésamo na frigideira até ficarem castanhas. Depois, junta-se sal (cerca de uma parte para cinco de sementes) e esmaga-se tudo no almofariz
No comments:
Post a Comment