De Mérida vieram dois livros de gastronomia acima da média que enriquecem a biblioteca (ver aqui). O Recetario de Cocina Extremeña é, como o nome indica, um lista de receitas tradicionais da província espanhola da raia. A lista revela uma gastronomia nascida da terra, sazonal, com algumas especialidade circunscritas. Dos animais aproveita-se tudo, e as ervas aromáticas dão vida a pratos que, de outra forma, não teriam carácter inolvidável. Nas receitas mais simples encontramos as setas (setas de cardo, setas en caldereta, setas en salsa, e outras receitas), os espargos (com ovos escalfados, com huevo duro, ou guisados), e outros produtos da terra, como as judias, as acelgas, as favas e as criadillas de tierra. O cojondongo e o zarangollo são dois clássicos desta secção. Nas sopas, à miríade de gaspachos juntam-se, entre outras, a sopa de ajo, a sopa de vigilia, com bacalhau, a sopa de habas (feijão grande), e a sopicaldino, com galinha, presunto e toucinho.
Dos “arrozes” destaca-se o de lebre, que ilustra bem o peso da caça na cozinha extremeña. Os cozidos vão desde o alentejano, que, como o nome indica, é confeccionado com grão, ao cocido extremeño da Cofradia (entidade que edita o livro), passando pelo clássico olla podrida. As frituras, ao contrário das andaluzes, baseiam-se na carne de aves, no presunto, na batata e no bacalhau. Este último é honrado com várias receitas na secção do mar; e o cação, tal como no vizinho Alentejo, também entra na lista, com a interessante receita cazón con laurel tostado. Dos rios, temos a lampreia, a truta e as enguias, entre outras espécies. (A lamprea a la antigua extremeña não engana; é prato nobre, com toda a certeza.)
As receitas de carne são infinitas. Há o cabrito assado, frito ou picado; o porco a oferecer todo o seu corpo para um receituário próprio; o borrego a entrar nas caldeiradas e nas chanfainas. Do gado bovino destaca-se a língua, os callos (dobrada) e o rabo de boi. O javali, a codorniz, a perdiz e a já citada lebre são alguns dos bichos que animam a secção da caça.
O item mais caricato surge no final do livro, no meio das azeitonas, dos caracóis, das rãs e da sopa de canónigos, e arquivado no capítulo “Vários”. Falo do lagarto, produto raríssimo nos dias de hoje devido à proibição da sua captura. Ao contrário do que aconteceu com as rãs, cuja importação resolveu o problema, as restrições ecológicas remeteram o entomatá de lagarto e o lagarto en salsa de almendras para o registo das recordações remotas.
Deixo-vos com a transcrição de um clássico da cozinha extremeña, o cojondongo (pág. 34):
Tuvo su origen en la “macarraca”, plato desprovisto de todo artificio, que se tomaba a media mañana en los dias calurosos y qye se hacia sobre el terreno: bien ene l tajo del segador, o en hato del pastor; ya que unos e otros llevaban consigo los ingredientes: agua fresca en un barril de barro de Salvatierra, aceite, vinagre, sal y ajo, en aceiteros y saleros de astas de buey e pan, que al ser integral y de trigo duro, se conservaba durante muchos dias en costales de lona.
Solo habia que majar en el “dornillo”o cuenco de encina el ajo, el pan y abundante aceite. Se le añadia el vinagre, la sal y el agua y...a comer. A veces, se migaban con “sopones”, es decir, con trozos de pan gruesos.
Se acompañaba de algún racimo de uvas o aceitunas. Téngase en cuente que su misión era refrescar, pero sin llenar en demasia, pues había que continuar la faena.
Más tarde, se suprimió parte del agua, quedóse una pasta clarita a la que se incorporó un abundante picado (nunca majado) de tomates, pimientos y cebolla.
Este es el actual cojondongo, que sigue cumpliendo su primitiva misión: refrescar.
Pero al llevar un buen aporte vitamínico, se torna sin acompañamento, mas bien como entrada de una comida seria.
Carlos Miguel Fernandes