MadridO
La Venencia era o sítio perfeito para começar. Durante a Guerra Civil, Hemingway reunia-se ali com os republicanos, à cata de notícias da frente, mas a velha taberna da Echegeray parece saída de uma Madrid muito mais antiga, eterna. Se, de repente, entrevíssemos através luz brumosa do salão do
Venencia um Quevedo embriagado declamando um dos seus poemas satíricos, ou o Capitão Alatriste a tinir o metal com algum biltre a soldo do Santo Ofício, não nos surpreenderíamos. Sim, aquela tasca é o sítio ideal para começar um
tapeo de domingo em Madrid. Mas o balcão estava cheio e, na verdade, era muito cedo para um
fino. Por isso, continuámos a percorrer languidamente o Bairro das Letras (
o dolci baci, o languide carezze, cantou Jorge de León no sábado no Teatro Real), seguindo as memórias do Século do Ouro Espanhol.
Parámos finalmente no Estado Puro, na Plaza Cánovas del Castillo, pausa circular no meio do Paseo del Prado, onde se situa a famosa Fonte de Neptuno. As tapas requintadas estão na moda, e muitas vezes, no meio de tanta “sofisticação” perde-se a essência da tapa: a simplicidade. Não há nada pior do que uma cozinha pedante. Mas no Estado Puro de Paco Roncero não se complica o que não se quer complicado. As batatas alioli com ovas de arenque e o pincho de cordeiro (temperado com manjericão) são o que uma tapa tem que ser. A caña, claro, é madrilena: bem tirada, e com dois dedos de espuma amarga e aveludada.
Depois das tapas havia que continuar o percurso até coisas mais sérias. A Faragullos, uma tasca galega da calle Fúcar, onde se come uma cecina de León perfeita, estava fechada, e não havia tempo para ir ao Cervantes (calle Fúcar, também) comer burriés e gambas de Huelva com a tranquilidade que os bichos merecem. Por isso repetimos o Maceira, na mesma rua e também galego. Sala pequena, mesas e bancos de madeira onde nos acotovelamos com o cliente do lado, um polvo perfeito e uma queimada que tomba qualquer herói. No sábado foi polvo à feira (e berbigões, e queijos galegos, e...), no domingo um guisado. E que guisado! A certa altura, quando já rapávamos o fundo do tacho, fez-se, na sala, o conxuro da queimada, com ritual e poema...
Mouchos, coruxas, sapos e bruxas.
Demos, trasgos e diaños, espritos das nevoadas veigas.
Corvos, pintigas e meigas, feitizos das manciñeiras.
Podres cañotas furadas, fogar dos vermes e alimañas.
Lume das Santas Compañas, mal de ollo, negros meigallos, cheiro de mortos, tronos e raios.
Oubeo do can, pregón da morte , fuciño do sátiro e pé de coello.
Pecadora língua de mala muller casada cun home vello.
Averno de Satán e Belcebú, lume dos cadavres ardentes, corpos mutilados dos indecentes, peidos dos infernales cús, muxido da mar embravescida.
Barriga inútil da muller solteira, falar dos gatos que andan a xaneira, guedella porca de cabra mal parida.
Con este fol levantarei as chamas deste lume que asemella as do Inferno, e fuxirán as bruxas a cabalo das súas escobas, índose bañar na praia das areas gordas.
¡Oíde, oíde ! os ruxidos que dan as que non poden deixar de quemarse na aguardente quedando así purificadas.
E cando este brevaxe baixe polas nosas gorxas, quedaremos libres dos males da nosa ialma e de todo embruxamento.
Forzas do ar, terra, mar e lume, a vos fago esta chamada : si é verdade que tendes mais poder ca humana xente, eiquí e agora, facede cos espritos dos amigos que están fora, participen con nós desta Queimada.
…mas havia que apanhar a camioneta para Granada e não pudemos ficar no Maceira a descansar, com a queimada de Orujo acabada de fazer, e muito menos ir ao último andar do Museu CaixaForum tomar o café, como é hábito. Mas fomos para casa saciados, de corpo e de espírito. E non ho amato mai tanto la vita!
Carlos Miguel Fernandes