Wednesday, August 03, 2011

À Mesa com: Vicente Blasco Ibañez

Todos hablaban del famoso all i pebre que se hacía en el Palmar, como si hubieren hecho el viaje sólo para comer.

Vicente Blasco Ibañez, Cañas y Barro

Naquela noite de domingo, Palmar era um deserto. Havia meia dúzia de restaurantes com as portas abertas, e era à porta que estavam os empregados, a conversar com as mãos atrás das costas, a seguir, com o olhar, as poucas pessoas que passavam, e talvez a lamentar o presente ingrato. Numa noite fresca de final de Outubro vimos em Palmar o rosto amargurado da crise espanhola. E nas mesas vazias que ocupavam a rua principal vimos famílias que já não podem sair de casa num domingo, e outras que com isso se ressentem, e que mais tarde ou mais cedo não vão ter comida na mesa. A aldeia de Cañas y Barro, pobre, deprimida, está a cem anos de distância, e, ao mesmo tempo, tão perto.

O Club de Pescadores era o único sítio com sinais de vida. Aí nos sentámos, ao ar livre, e, enquanto esperávamos pela paelha, comemos um delicioso all i pebre de enguias: alho, pimentão, enguias, e um guisado que nasceu ali, nas margens da Albufera, quando os bichos agitavam as águas do charco e quase se deixavam apanhar com as mãos. Agora, tal como os ingredientes das paelhas de Palmar, as enguias chegam de longe, talvez até de outro continente. Os guardiões da Albufera já não têm muito para guardar, a não ser o arroz bomba, e um pequeno naipe de receitas que compõem um capítulo central da gastronomia espanhola. Já não é pouco.

Carlos Miguel Fernandes

Madrid

O La Venencia era o sítio perfeito para começar. Durante a Guerra Civil, Hemingway reunia-se ali com os republicanos, à cata de notícias da frente, mas a velha taberna da Echegeray parece saída de uma Madrid muito mais antiga, eterna. Se, de repente, entrevíssemos através luz brumosa do salão do Venencia um Quevedo embriagado declamando um dos seus poemas satíricos, ou o Capitão Alatriste a tinir o metal com algum biltre a soldo do Santo Ofício, não nos surpreenderíamos. Sim, aquela tasca é o sítio ideal para começar um tapeo de domingo em Madrid. Mas o balcão estava cheio e, na verdade, era muito cedo para um fino. Por isso, continuámos a percorrer languidamente o Bairro das Letras (o dolci baci, o languide carezze, cantou Jorge de León no sábado no Teatro Real), seguindo as memórias do Século do Ouro Espanhol.

Parámos finalmente no Estado Puro, na Plaza Cánovas del Castillo, pausa circular no meio do Paseo del Prado, onde se situa a famosa Fonte de Neptuno. As tapas requintadas estão na moda, e muitas vezes, no meio de tanta “sofisticação” perde-se a essência da tapa: a simplicidade. Não há nada pior do que uma cozinha pedante. Mas no Estado Puro de Paco Roncero não se complica o que não se quer complicado. As batatas alioli com ovas de arenque e o pincho de cordeiro (temperado com manjericão) são o que uma tapa tem que ser. A caña, claro, é madrilena: bem tirada, e com dois dedos de espuma amarga e aveludada.

Depois das tapas havia que continuar o percurso até coisas mais sérias. A Faragullos, uma tasca galega da calle Fúcar, onde se come uma cecina de León perfeita, estava fechada, e não havia tempo para ir ao Cervantes (calle Fúcar, também) comer burriés e gambas de Huelva com a tranquilidade que os bichos merecem. Por isso repetimos o Maceira, na mesma rua e também galego. Sala pequena, mesas e bancos de madeira onde nos acotovelamos com o cliente do lado, um polvo perfeito e uma queimada que tomba qualquer herói. No sábado foi polvo à feira (e berbigões, e queijos galegos, e...), no domingo um guisado. E que guisado! A certa altura, quando já rapávamos o fundo do tacho, fez-se, na sala, o conxuro da queimada, com ritual e poema...

Mouchos, coruxas, sapos e bruxas.
Demos, trasgos e diaños, espritos das nevoadas veigas.
Corvos, pintigas e meigas, feitizos das manciñeiras.
Podres cañotas furadas, fogar dos vermes e alimañas.
Lume das Santas Compañas, mal de ollo, negros meigallos, cheiro de mortos, tronos e raios.
Oubeo do can, pregón da morte , fuciño do sátiro e pé de coello.
Pecadora língua de mala muller casada cun home vello.
Averno de Satán e Belcebú, lume dos cadavres ardentes, corpos mutilados dos indecentes, peidos dos infernales cús, muxido da mar embravescida.
Barriga inútil da muller solteira, falar dos gatos que andan a xaneira, guedella porca de cabra mal parida.
Con este fol levantarei as chamas deste lume que asemella as do Inferno, e fuxirán as bruxas a cabalo das súas escobas, índose bañar na praia das areas gordas.
¡Oíde, oíde ! os ruxidos que dan as que non poden deixar de quemarse na aguardente quedando así purificadas.
E cando este brevaxe baixe polas nosas gorxas, quedaremos libres dos males da nosa ialma e de todo embruxamento.
Forzas do ar, terra, mar e lume, a vos fago esta chamada : si é verdade que tendes mais poder ca humana xente, eiquí e agora, facede cos espritos dos amigos que están fora, participen con nós desta Queimada.

…mas havia que apanhar a camioneta para Granada e não pudemos ficar no Maceira a descansar, com a queimada de Orujo acabada de fazer, e muito menos ir ao último andar do Museu CaixaForum tomar o café, como é hábito. Mas fomos para casa saciados, de corpo e de espírito. E non ho amato mai tanto la vita!

Carlos Miguel Fernandes

Monday, April 04, 2011

Albufera, o berço da Paelha

De la taberna de Cañamel, que era el primer establecimiento del Palmar, salía un grupo de segadores con el saco al hombro en busca de la barca para regresar a sus tierras. Afluían las mujeres al canal, semejante a una calle de Venecia, con las márgenes cubiertas de barracas y viveros donde los pescadores guardaban las anguillas.

Vicente Blasco Ibañez, Cañas y Barro

Só queria comer uma paelha verdadeira, com caracóis e enguias, mas olhavam-me de um modo estranho e algo paternalista, dizendo que a paelha não tem enguias, que isso é o all i pebre, e que uma paelha leva — dependendo de quem nos fala — frango/coelho/marisco/ mistura de carne e marisco. Pois é, mas está tudo nos 3000 años de Cocina Española, de Rosa Tovar e Monique Fuller. E qualquer espanhol mais versado na História da gastronomia sabe que a paelha clássica tem enguias, caracóis e judias verdes e é uma invenção dos pescadores da Albufera, um lago natural que está a poucos quilómetros a sul de Valência, onde se cultiva o arroz essencial para este prato, o Bomba. Lá fui então para Palmar, na margem oriental da Albufera, sem grandes expectativas. Assim foi: paelha de coelho, um all i pebre (alho e pimentão) de enguias como entrada, e um Rioja reserva de 2004, do qual me esqueci dos detalhes (talvez por tomar quase sempre partido pelos Ribera). Para comer a tal dos caracóis e enguias há que ir à Comunidade Valenciana profunda, receio. Lá chegaremos. De qualquer forma, não foi tempo perdido, e valeram a pena as voltas, entre o táxi e a boleia de um camarero; na Andaluzia não encontro uma paelha como aquela que me puseram em Palmar, no Club de Pescadores. E a dois passos do Mediterrâneo, quando parece que ouvimos Joan Manuel Serrat, é outra coisa: soy cantor, soy embustero, me gusta el juego y el vino, tengo alma de marinero… ¿Qué le voy a hacer, si yo nací en el Mediterráneo?

Tremoços

César Aguilera, na sua História da Alimentação Mediterrânica, diz que, na última parte da época medieval, foi o alimento da fome. Em Limpieza de Sangre, a segunda aventura de Alatriste, Arturo Pérez-Reverte coloca o Capitão e o seu protegido Iñigo a comer pinhões e tremoços na Plaza Mayor de Madrid, enquanto assistem a uma corrida de touros. Estávamos em 1623, quando Portugal era Espanha e Filipe era terceiro e quarto. Pouco a pouco, os tremoços foram desaparecendo dos hábitos alimentares dos espanhóis, e, mesmo hoje, apesar de serem presença habitual em qualquer supermercado, ainda não os vemos nas barras de Madrid ou de Sevilha, nem à laia de aperitivo, condição natural do tremoço (e para mais não dá) e hábito que, diz-nos outra vez Aguilera, nos chegou desde Bizâncio. É verdade que no Campo del Principe há uma casa — apropriadamente chamada Altramuce — onde nos põem esta espécie de milho com esteróides com a segunda ou terceira tapa, e no velho Tabernaculo da calle Navas também costumam aparecer quando nos caem em sorte as tortillitas. Mas é em Lisboa que os tremoços são as estrelas das cervejarias, a “tapa” típica e solitária da imperial. Não há fome que não dê em fartura.

Carlos Miguel Fernandes

Thursday, February 17, 2011

Zucchini Marinati

Chama-se A Tavola com l’Olio de Oliva e foi um dos meus primeiros livros de cozinha. Comprei-o em Florença, ou em Lucca, não sei bem quando, acho que em 2001, mas pode ter sido em 1997 (a memória…), e serviu-me de guia para os primeiros pesto, quando ainda não havia mil receitas de cada prato, italiano ou do Curdistão, à distância de um clique. Na verdade, é apenas um livrinho, e hoje já não serve para muito, a não ser como recordação de outras expedições. Foi útil para isto, no entanto, para fazer curgetes marinadas, ou zucchini marinati, em estrangeiro, mas, claro, cada receita é apenas um farol, e com o ponto de referência bem localizado podemos então procurar abrigos mais acolhedores ou mais exequíveis. Com vinagre de rosmaninho da República Checa e curgetes secas que vieram da Turquia, por exemplo. E orégãos. O importante é que o resultado, mais ou menos canónico, seja motivo para recordar o Al Vino Al Vino, as curgetes marinadas do tasco, o pinot noir ou o riesling que servem a copo (o riesling cai melhor com estes zucchini), e aquele momento, ao final da tarde e no coração do Rioni Monti, em que até nos esquecemos que, depois da hora de jantar, meia Roma é uma cidade morta. Ou uma cidade meio morta. Como preferirem.


Carlos Miguel Fernandes

Comer em Roma


Um vinho e um aperitivo no Al Vino Al Vino da Via dei Serpenti — curgetes marinadas, por exemplo, ou um simples prato de queijos —; alcachofras fritas no La Carbonara, um restaurante recatado, mas extraordinário, sito na Via Panisperna, bairro Rione Monti; e a pasta fresca também do La Carbonara!, que pasta meus senhores!, que pasta; um ossobuco no Pietro Al Pantheon, lugar seguro rodeado de armadilhas para turistas; e, finalmente, uma saltimbocca perfeita no Da Nino, Via Merunala, 74, longe dos trilhos turísticos, mas suficientemente perto do Coliseu para merecer um desvio. Cada um desenha as suas rotas pelas grandes cidades como pode, evitando as emboscadas que lhe minam o caminho, usando todos os recursos assimilados noutras aventuras. No final, se as regras mais elementares forem respeitadas e se os padrões forem ajustados ao contexto, o balanço é quase sempre positivo.


Carlos Miguel Fernandes

Queijos Espanhóis - Afuega' Pitu

Chama-se Afuega’l Pitu, é asturiano, e César Aguilera explica: Foi dito que devia dar-se a provar a um frango (“pitu”), e se este se asfixiava ou “afuegaba”, o queijo estava no ponto (literalmente, em bable, dialecto dos asturianos: “asfixia o frango”). Acrescentamos que é um queijo de leite de vaca cru, e que, por essa razão, as asaes de Espanha chegaram a propor a sua proibição. Havia que agradar aos mui salubres burocratas de Bruxelas, de onde chegam leis e normativas que proíbem a elaboração de queijos a partir de leite cru, mas, felizmente, os asturianos não se deixaram subjugar, e o Afuega’l Pitu continua a ser produzido, nas variedades branco e vermelho (com pimentão), para gáudio de quem aprecia a sua textura rude e o seu sabor amargo e delicado. Em Madrid podem prová-lo na na Casa Gonzalez, número 12 da calle León (uma perpendicular à Huertas). A versão roja, mais forte, pede um tinto recio, dizem os especialistas, e o Finca La Estacada Cosecha de Família 2006, Syrah e Merlot, com 14% de álcool, está muito bem. Para acabar a garrafa, pode vir uma cecina de vaca. Mas para essa faena o melhor é descer até à calle Fucar, entrar no Faragullas, e pedir uma dose, cortada à mão, da enorme peça de cecina (de León, claro) que quase esmaga o balcão. Bom proveito.

Carlos Miguel Fernandes

Sunday, March 21, 2010

Os Meus Queijos Favoritos

- Banon (cabra)

- Parmegiano Reggiano (vaca)

- Queijo de São Jorge (vaca)

- Queijo Picante da Beira Baixa (ovelha e cabra)

- Torta del Casar (ovelha)

- Queijo Azul dos Picos da Europa (cabra e vaca)

- Reypenaer (vaca)

- Pecorino Tartufo (ovelha)

- Um queijo fumado polaco do qual não me recordo o nome


Carlos Miguel Fernandes

Monday, March 08, 2010

Tagliatele com Anchovas

Alho e coentros picados, uma lata de anchovas, queijo Grana Padano (ou Parmegiano), azeite, pimenta negra, e q.b de tagliatele cozido al dente. A comida "rápida" também pode ser boa.



Carlos Miguel Fernandes

Sunday, February 14, 2010

Coentros

Faz frio em Granada, o céu ameaça neve e da janela da minha casa vejo as serras salpicadas de branco. Isto é o presente, o meu presente. Aqui há pezinhos de porco (manitas de cerdo), que se fazem com um molho atomatado. Há migas e açordas — e que boas estavam, no outro dia, as migas de chouriço e pimentos na taberna Los Poetas Andaluzes —, feitas com pão, farinha de trigo, ou até farinha de milho (sabem o que é o xarém algarvio?)! Isto é a Andaluzia. É o Sul. Tão Sul como o Alentejo que hoje evoquei com sabores.

Foi uma viagem especial, pois tenho as memórias habitadas pelo gosto dos coentros, do ovo escalfado, do pão frito, das migas. E pelo calor, pois era no Verão que mudava de dieta, de uma alimentação lisboeta, influenciada pelos quatro cantos de Portugal, para uma mesa alentejana de aprumada labuta. Nessa mesa, a açorda nunca faltava. Julgo até que saía das torneiras. E faz-se assim:

Ingredientes: alho, coentros, azeite, ovos, água e sal.

Num almofariz, esmagam-se os dentes de alho, os coentros e o sal (as quantidades dependem do gosto e do bom senso). Dispõem-se fatias de pão — pode ser frito — em pratos de sopa. Espalha-se a papa de alho e coentros sobre o pão, e rega-se tudo com um fio de azeite. Ao lado, a água já está a ferver. Pode utilizar-se o caldo de cozedura de uma posta de bacalhau, ou, num registo menos canónico, a água largada por um quilo de mexilhões, como fiz hoje. Nessa água vamos escalfar os ovos. Quando estiverem prontos, retiram-se os ovos, deita-se a água a ferver sobre o pão, e serve-se, com o ovo no prato ou ao lado. À pasta de alho e coentros, a alma deste prato, pode juntar-se um raminho de poejos.


E agora uns pezinhos de coentrada.

Ingredientes: alho, coentros, azeite ou banha, água, sal, pezinhos de porco, farinha.

Começa-se por cozer os pezinhos, salgados na véspera, em água a ferver, durante duas horas (ou até ficarem macios). Quando estiverem prontos, desossam-se (eu não os desosso completamente, porque tenho apetites caninos). Dão-se aos alhos, aos coentros e ao sal o mesmo tratamento de almofariz da receita anterior. Frita-se a mescla em azeite, e quando os alhos começarem a alourar junta-se a água da cozedura, vinagre e farinha. Quantidades? 5 dl de vinagre por cada pezinho deve bastar; a água deve ser a suficiente para um bom molho, mas sem afogar os pezinhos; a farinha serve para espessar o molho, e, por isso, é uma questão de se ir acrescentando até termos o resultado desejado. Deixa-se isto tudo ferver, junta-se a carne e mais uma mão de coentros e serve-se sobre pão frito.


E depois disto ainda marcha uma sericaia?


Carlos Miguel Fernandes

Sunday, January 31, 2010

Peitos de Codorniz com Arroz de Passas e Amêndoas

Isto é apenas uma espécie de estudo para uma nova receita. Nova, mas nada original, pois são sabores e técnicas do Al-Andalus. Ingredientes: codornizes, amêndoas, passas, cebola, alho, cominhos, arroz e laranja. Retiram-se os peitos dos bichos e salteiam-se (15 segundos de cada lado) em azeite, antes de irem ao forno (pré-aquecido, 200º) durante 6 minutos com um banho de mel, molho de soja e suma de lima (3 colheres, 3 colheres, 1 colher). Virá-los aos 3 minutos. Entretanto, frita-se a laranja em azeite, com um pouco de açúcar e raspas da casca.
O arroz é cozido na água (com sal) antes utilizada para cozer o que restou das codornizes após lhes terem sido retirados os peitos. Ao lado, refoga-se a cebola em azeite, com o alho picado, os cominhos, as passas e as amêndoas (previamente escaldadas e peladas). Junta-se o arroz e os pedaços de codorniz cozidos, mexe-se bem, e serve-se.


Carlos Miguel Fernandes

Monday, November 02, 2009

Molejas de Vitela

Ingredientes: molejas e sal.

Receita: grelhas as molejas.

Sugestões: deitar o sal quando as molejas já estão prontas (flor de sal, de preferência); se o sabor estiver demasiado forte devido à gordura, regar as molejas com algumas gotas de limão.


Carlos Miguel Fernandes

Wednesday, October 07, 2009

Delícias Húngaras

Paprika (pasta), paprika (pó), salame (com paprika), patés de fígado de ganso, paté de fígado de ganso da marca Gundel (o mais famoso restaurante de Budapeste), fígado de ganso demi-cuit.


Carlos Miguel Fernandes

Saturday, June 27, 2009

Espargos

Uma canção popular andaluza fala assim dos espargos:

Los de abril para mí,
Los de mayo para mi amo,
Los de junio para ninguno.

Fonte: Carlos Arbelos, Gastronomía de las tres culturas, Caja Granada - Obra Social

Carlos Miguel Fernandes

Wednesday, June 24, 2009

Rabo de Toro Cordobés

Um bom sofrito (cebola, alho, tomate,...), rabo de touro, cenoura, grãos de pimenta negra, cravinho, vinho (do Porto, Jerez, ou algo parecido), água para cobrir, pimentão, e é só seguir os passos de um guisado. Não sei se há uma receita padrão, mas o rabo de touro ao estilo cordobês tem dois pontos essencias: cozedura em lume brando, durante aproximadamente três horas (qualquer guisado de rabo de touro exige esta preparação) e sabor forte a especiarias (meia dúzia de grãos de pimenta preta e quantidade igual de cravinho para meio quilo de carne). Esta é uma receita que carrega consigo grande parte da História da gastronomia andaluza - aqui em baixo, com um risotto de legumes.


Carlos Miguel Fernandes
Na Agenda

¿Que ofrece usted en su nueva carta?

Mantengo los platos que más aceptación tuvieron entre mis clientes. La caldereta de cordero lechal, las migas alpujarreñas, el choto [cabrito] al ajo cabañil, caracoles con jamón, carne a la brasa en barbacoa, cocido de hinojos [funcho]…Además tenemos la gama de postres moriscos, soplillos de la Alpujarra, leche frita, potaje de castañas y el flan aromático, recetas recuperadas con ingredientes propios de aquella zona. Y especialmente, ofrecemos el mejor jamón alpujarreño, tan rico y tan bien curado que supera a los pata negra.

Ideal

Chama-se El Chiringuito e está em Cacin, a trinta quilómetros de Granada (no sentido de Loja). A cozinha é Alpujarreña.

Carlos Miguel Fernandes

Wednesday, June 17, 2009

Marisco em Granada



Uma navalheira na cervejaria Costa a Costa, que fica na esquina da calle Ancha de Gracia e da Lope de Vega. A Costa a Costa tem mariscos razoáveis a preços razoáveis, e as tapas (aquelas que acompanham qualquer bebida) costumam ser de peixe (bem) frito, mas se quiserem o melhor de Granada (com preços condizentes) baixem pela Ancha de Gracia até à Pedro Antonio, e logo vêm a Chanquete, onde, com alguma sorte, vos oferecem uma tapa de lagostins com a cerveja ou o vinho.


Noutro registo, há uma tasca na calle Méndez Nuñez (no troço entre a Arabial e a Pedro Antonio) que costuma ter marisco extraordinário, o qual é muito bem tratado na cozinha e vendido a preços que já não se usam em Granada. Se não se contentarem com umas canilhas, umas gambas brancas ou mesmo com uns lagostins, e se a carteira estiver saudável (e mesmo assim pagam menos do que em qualquer outra marisqueira de Granada), peçam gambas rojas à la plancha, e preparem-se para uma experiencia transcendental. E se, chegados a esta tasca da qual nunca me lembro nome, tiverem a sorte de ver no expositor as ortiguillas (ou ortigas de mar, uma anémona marinha que se vê muito nos restaurantes de Cádiz) peçam uma dose — fritas —, sem hesitação. As tapas vão chegando da cozinha ao sabor das cañas e da vontade do taberneiro: caracóis, salmonetes fritos, fígados de cordeiro,…


Carlos Miguel Fernandes

Wednesday, June 03, 2009

Descobrimentos, Paprika e Caril

Ali em baixo escrevi: A paprika é feita com os pimentos que crescem na Hungria, os quais são o produto de um processo evolutivo – e os pimentos prestam-se bem à hibridação – que começou desde a sua introdução em Espanha no século XVII até chegarem à Europa Central.

É verdade, mas o caminho dos pimentos desde a Península Ibérica até à Hungria seguiu um trilho menos óbvio (e começou antes do século XVII, antes de entrar definitivamente nas cozinhas espanholas).


Os pimentos — desde as pequenas e delgadas malaguetas ao enfunado pimento vermelho — são os frutos da planta capsicum, nativa da América tropical e descoberta por Cristóvão Colombo quando aportou nas Caraíbas. As primeiras plantas chegaram a Espanha em 1494 e rapidamente se espalharam pelo Norte de África, África Ocidental, Madagáscar e, finalmente, Índia, levadas pelas naus portuguesas que faziam a rota das especiarias. Não se sabe ao certo quando chegaram, mas trinta anos após Vasco da Gama ter trilhado pela primeira vez o caminho marítimo para a Índia já existiam pelo menos três tipos de pimentos/malaguetas na região de Goa. É nessa altura que nasce o célebre vindaloo, fruto da fusão da cozinha portuguesa — vindaloo é uma corruptela de vinho e alhos — e goesa, e da introdução da capsicum na dieta da região. O vindaloo pode até ser classificado como o primeiro caril, ou o pai de todos os “caris”, o que significaria que portugueses e espanhóis tiveram um papel crucial no lento despontar do maior símbolo actual da cozinha indiana. Enquanto o império Mughal, a norte, enriquecia a gastronomia do subcontinente asiático com a herança persa, os povos ibéricos, a milhares de quilómetros de distância, faziam sentir a sua influência através dos empórios do sul do país.


Ainda mal haviam chegado à Índia, já os pimentos e seus derivados seguiam uma rota terrestre pela Ásia Central até chegar à Turquia. Daí, e segundo Lizzie Collingham no livro Curry, A Tale of Cooks and Conquerors, foram levados para a Europa Oriental e Central:

Turks, whose source of supply is uncertain, though it seem likely that capsicums grown on the west coast of India were dried or ground into powder and then traded along the medieval spice routes across the Arabian Sea into Persia. From there dried chillies, cayenne pepper, and paprika would have found their way north along the trade routes connected to the Black Sea ports, where they were incorporated into Turkish cuisine. In 1526, the Turks conquered Hungary and paprika, later the hallmark spice of Hungarian cookery, was introduced into the region.


O fluxo de influências na gastronomia europeia sempre seguiu maioritariamente no sentido Oriente-Ocidente. A introdução do olival e da vinha na Península Ibérica, vindos da Grécia, a forte influência da cozinha árabe nas restantes cozinhas mediterrânicas, a rota do arroz, desde o pilau persa até à paella valencia, são alguns exemplos dos ventos dominantes que foram moldando as gastronomias do sul da Europa. A América abriu a porta das traseiras — que logo se transformou em porta de entrada — da Península Ibérica a novas influências. Sem tentar contrariar a corrente, os portugueses foram directamente à fonte e ofereceram à Índia as malaguetas do Novo Mundo. Entretanto, o pimento seguiu o rumo natural e migrou para Ocidente. Os portugueses e os espanhóis deram a capsicum ao Oriente e os turcos retribuíram com a paprika

Carlos Miguel Fernandes

Monday, May 25, 2009

Filete de Cabezada de Cerdo Ibérico com Açorda de Tomate e Espargos

A receita quase se lê na imagem.


Carlos Miguel Fernandes

Tuesday, May 19, 2009

Estufado de Porco com Paprika e Arroz Venere

Meio quilo de carne de porco, duas ou três folhas de louro, meia dúzia de dentes de alho esmagados, azeite e vinagre em proporção três para um, alguns ramos de rosmaninho seco, sal, pimenta, pimenta Caiena, duas horas de repouso, e temos a matéria pronta para o estufado, que logo vai à panela com duas cebolas, meio quilo de tomate e um pimento verde pequeno (daqueles magros e longos, de polpa fina, que se encontram facilmente em Espanha), tudo toscamente picado. Junta-se 200 ml de água, acende-se o fogo e deixa-se em lume brando durante 45 minutos. Ao lado, coze-se arroz venere em água com sal durante 18 minutos. Esta escolha, para séquito da carne, tem pouco a ver com razões estéticas e muito menos com as apregoadas propriedades afrodisíacas deste arroz negro, cultivado no norte da Itália mas de origem chinesa. O venere, para além de ter um sabor exótico, não absorve muito os molhos, e assim se podem separar os sabores e evitar a mescla “pesada” resultante do estufados acompanhados com arroz branco. Não há nada mais tentador do que um arroz branco − seja basmati ou de grão longo – ensopado por um molho de um guisado ou estufado bem apurado mas também é verdade que o efeito obtido raramente é um exemplo de leveza e subtileza.

Logo que o arroz esteja cozido e a carne tenra, temos o prato quase pronto. Só falta a paprika. Também se pode usar pimentón de La Vera mas o efeito não é igual, pois para além de ser feito com outros pimentos, o processo de produção dá à versão espanhola um leve aroma a fumado. O pimentón é produzido com pimentos que crescem em Espanha, nomeadamente nas regiões de Múrcia e Cáceres, e ganhou um peso importante na gastronomia espanhola desde a sua introdução na península. O polvo à galega, por exemplo, não existe sem este condimento. O pimentón é também um ingrediente fundamental da probadura, que, mais do que um prato ou receita, é um ritual: é assim chamada pois faz-se, logo após a matança do porco, para provar a massa da carne para os chouriços e aprovar, ou não, o tempero.

A paprika é feita com os pimentos que crescem na Hungria, os quais são o produto de um processo evolutivo – e os pimentos prestam-se bem à hibridação – que começou desde a sua introdução em Espanha no século XVII até chegarem à Europa Central. Há diversas variantes à venda nos mercados de Budapeste, desde a mais suave e adocicada (Különleges), com uma tonalidade avermelhada, até ao pó mais “quente” e acastanhado (Erős). Aqui usamos duas colheres de sopa de uma versão intermédia (Rózsa), mas com cuidado, pois a paprika é muito instável. Por um lado, o seu sabor só é libertado quando é cozinhada, mas, se queimar, ganha um sabor amargo e desagradável. Como não vai estar em contacto com gordura a ferver, não há muito perigo, mas mesmo assim vamos pôr o lume no mínimo, largar a paprika no estufado, mexer e deixar cozinhar durante dois ou três minutos. Está pronto. Um prato mediterrânico com um toque magiar. ¡Al papeo!

Carlos Miguel Fernandes

Tuesday, May 12, 2009

Ovos com Farinheira e Espargos


…numa versão alternativa. Podemos começar por cozer os espargos em água com sal até ao ponto al dente. Entretanto, faz-se o polme, com um ovo, uma colher de sopa de farinha de trigo, salsa picada, e um pouco de sal. Na altura certa, quando tudo o que vem a seguir estiver pronto, passam-se os espargos pelo polme, dois por dose, e fritam-se em azeite. Vamos agora à farinheira, que deve ser cozida em água durante cinco minutos, enquanto se vai fritando, em azeite, duas cebola verdes (green onion, cebolla tierna) e dois dentes de alho picados. Quando estiver pronta, tira-se a pele da farinheira e junta-se o “miolo” à cebola, que entretanto já deverá estar transparente. Frita-se tudo durante dois ou três minutos. Como uma farinheira serve cerca de quatro doses (em regime de entrada), vamos agora fazer quatro ovos, utilizando o método de Arzak, mas, neste caso, vamos misturá-los com meia dúzia de espargos (usamos só as pontas) e triturar tudo. Deitamos o resultado em quatro “sacos” e cozemos durante 5 minutos no vapor (o interior deve ficar cremoso, para que escorra sobre a farinheira quando o ovo é aberto). Retiramos os ovos das películas e montamos o prato como está na imagem (é uma sugestão).

O resultado não é nada desinteressante, mas sofre do mesmo (pequeno) defeito dos clássicos ovos mexidos com farinheira. É uma entrada “pesada”, falta-lhe uma certa frescura que nem um punhado de ervas frescas consegue dar. Sugestões?


Sunday, December 28, 2008

À Mesa do Mundo - Taberna Ideal (Lisboa)

De visita a Lisboa, encontrei uma A Taberna Ideal que abriu há poucos meses e que trouxe uma mensagem diferente mas clara: o restaurante assume-se como alternativa a um modelo com uma presença cada vez mais forte nas cidades europeias, que confunde cozinha de autor com pratos feitos a eito, polvilhados com endro e adornados com riscos de redução de vinagre balsâmico. Na Taberna Ideal encontramos a “louça da avó” e o cada vez mais raro mobiliário de mármore e madeira. A comida chega à mesa com aquele aspecto rústico que, hoje, só é encontrado nos restaurantes dominados pelo aço inoxidável, de onde apetece fugir. Claro que esta opção corre o risco de ser paradigma, ou, utilizando palavras mais urbanas, moda. O chique já anda à espreita e o dia em que esta Taberna se vai transfigurar em lugar para ser visto não deve tardar. Entretanto, aproveitemos a comida que está muito acima da (baixa) média em que caiu a hotelaria portuguesa nos últimos anos (neste aspecto, há que culpar a crise). Não vou fazer crítica gastronómica, mas não posso deixar de destacar a tiborna, um petisco esquecido do Sul de Portugal. Aliás, a gastronomia algarvia parece ser um prato forte da Taberna Ideal e quero enaltecer aqui essa opção (mas posso estar enganado, porque em certas regiões do Sul as cozinhas algarvia e alentejana confundem-se). Na minha opinião, a cozinha do Algarve é a melhor de Portugal. É também a mais desprezada. Por isso, qualquer tentativa de apontar as baterias gastronómicas para o Sul é um serviço público.

Como não há tabernas ideais, tenho, pelo menos, dois reparos a fazer. O borrego estava óptimo, mas eu não lhe chamaria “ensopado”. E não deixem acabar a cerveja (ou o vinho branco fresco). Ah, e um balcão com espaço suficiente para beber uma imperial e comer uma tiborna, pelo menos enquanto esperamos por uma mesa, era muito bem-vindo. Mas isto é a alma granadina a falar. Sei que Lisboa e as outras cidades portuguesas já não conhecem a vida de barra. E nunca ouviram falar.

Resumindo, a Taberna Ideal é um lugar muito recomendável, especialmente para quem aprecia os sabores do Sul, e os reparos negativos não são mais do que pequenos detalhes num cenário louvável que não vos devem afastar do número 112 da Rua da Esperança, pois a relação qualidade/preço é, provavelmente, imbatível.

(Como disse, não quero fazer crítica gastronómica. Mas posso dar nota de prova positiva à tiborna de queijo de cabra, alecrim e mel, aos picos com castanhas, aos cogumelos, ao empadão de codorniz e às bochechas de porco preto com batata doce frita.)

Thursday, December 18, 2008

Caracóis

We all have our tastes. I don't understand why some people eat snails. I can't say for sure why I dislike them, but I can certainly think up a few stories. Maybe I have a certain kind of sensor on the cells of my tongue that goes into a spasm of dismay. Or maybe some network of neurons in my brain associates the taste of snails with some awful memory from my distant past. Or maybe I simply never had the opportunity to come to love snails because I grew up eating pizza and hamburgers and peanut butter. The gastronomic window has now closed.
Carl Zimmer, in Microcosm - E. Coli and the New Science of Life


Caracóis no Holandês de Portimão. Uma casa magnífica que fechou há cerca de um ano para reabrir noutro local da cidade (mas na última vez que passei por Portimão, há 4 meses, ainda não existia o novo Holandês). No entanto, quem ficou a tomar conta da tasca sita na Rua Dom Carlos I não está a fazer um mau trabalho. Recomenda-se.

Carlos Miguel Fernandes

Monday, December 01, 2008

Gambones Marinados

...com três partes de azeite (Crismona, um excelente produto da província de Córdoba) para uma de vinagre (de Jerez), alho, ajos tiernos, sementes de coentros, sal e pimenta preta. Crus, claro.


Carlos Miguel Fernandes

Tuesday, October 21, 2008

Um Queijo Sublime

Podemos chegar aos Picos da Europa, um conhecido agrupamento de montanhas da Cordilheira Cantábrica, pelas comunidades das Astúrias, Cantábria ou Castela-Leão. A região é um destino de viajantes mais e menos aventureiros: os seus muitos picos com mais de 2000 metros de altitude atraem alpinistas e caminhantes (e causam algumas vítimas todos os anos), e as suas paisagens dramáticas fazem do cenário um local de peregrinação para aqueles que buscam a natureza agreste, e ao mesmo tempo serena, mescla tão comum em Espanha, esta magnífica terra que Fernando Villena, por interposta personagem, descreve com entusiasmo:

- ¡España! – exclama el joven viajero, lleno de entusiasmo. – ¡Qué tierra de contrastes! ¡Qué fuerza! ¡Qué lucha incesante entre la vida y la muerte!

Vida e morte. Terra de contrastes. Exuberância e deserto. Espanha descreve-se com cores garridas, ou a branco e negro. Não há motivos para o cinzento, não há lugar para a temperança. E é assim o Queijo Azul dos Picos da Europa, excessivo, intensamente oloroso, explosivo na prova. O sabor, ligeiramente picante, faz vibrar diversas cordas papilares antes de espalhar até ao nariz, prolongando-se durante segundos, minutos, e até dias, se contarmos com a memória. Os queijos com personalidade são assim, teimosos, recusam-se a deixar-nos os sentidos, e a abandonar-nos a um anticlímax gustativo sem sentido.


Da região desta pérola é muito conhecido o Cabrales, primo asturiano deste azul leonês (de Valdéon), e que com ele partilha a raça − é também um queijo azul, feito com mistura de leites, de vaca e cabra − , e, principalmente, a região de produção, os Picos da Europa, onde são envelhecidos (em cuevas, segundo a tradição) até ficarem num indefinível estado entre semi-curado e o curado. Como qualquer queijo azul, presta-se a preparos culinários, mas é um pecado tirar este Picos da Europa da mesa, onde não precisa mais do que um bom pão, e um vinho, como companhia. Eu compro-o num Corte Inglês, a dois passos de casa. Mas eu vivo em Granada. Será que este queijo sublime chega aos escaparates portugueses?

Carlos Miguel Fernandes

Monday, September 15, 2008

À Mesa do Mundo – Semproniana (Barcelona)

A carrer Roselló, uma das muitas vias extensas que compõem os Eixamples, é, na zona que se aproxima da Faculdade de Medicina, um segredo bem escondido e afastado do fluxo turístico. É lá que se encontra o Semproniana, um restaurante que já havia visitado em 2006, e ao qual voltei há pouco dias para confirmar a avaliação prévia. As molejas saíram, com muita pena nossa, do menu, mas o brazo de un gitano moreno, imagem de marca da casa, lá estava para nos estimular com a sua personalidade forte. Um canelone, um recheio de botifarra negra e um molho de parmesão, e o resultado é uma ode a uma certa gastronomia mediterrânica, um delírio de sabores em confronto, uma simplicidade desarmante. A refeição seguiu com o tamboril com judias e açafrão, e dois pratos fortes, um coelho recheado de verduras, e um pregado, que, como se sabe, é das melhores coisas que anda pelos oceanos. O Celia 2001, um reserva da Ribera del Duero, teve que se aguentar com tamanha diversidade, mas um grande vinho porta-se sempre bem (e este era “enorme”) e uma refeição nunca se pode desviar do que lhe é central: a comida, e esta estava irrepreensível. O Semproniana, mais uma vez, rondou a perfeição. Em Espanha só me sento para uma refeição tradicional quando a proposta é muito estimulante. A tapa está-me no sangue, e não é de ânimo leve que troco os longos roteiros feitos de marisco, frituras, enchidos e muitos outros petiscos saídos do riquíssimo receituário espanhol, pela tranquilidade de um jantar “de faca e garfo”. O Semproniana consegue tirar-me da barra e sentar-me à mesa. Mas antes não dispenso um par de cañas e umas setas no bar do 150 da Roselló, mesmo ao lado do restaurante, e que se pode ver na imagem aqui em baixo. Um excelente ponto de encontro. E um daqueles lugares em que, por vezes, nos sentimos no centro do mundo.


Carlos M. Fernandes, Barcelona, 2008

Carlos Miguel Fernandes

Tuesday, September 02, 2008

Espetada de Fígados de Galinha

Com um quilo de fígados de galinha a descongelar, oscilei entre a Hungria e a Sérvia. Iria guisá-los sobre um refogado de azeite, cebola, alho e tomate, com muita paprika, como se come em Budapeste, ou furá-los com um espeto e grelhá-los, celebrando o petisco das cervejarias de Belgrado? Decidi dividir o lote em duas porções e arrancar para um labor duplo. Quem quiser fazê-las ao estilo húngaro, basta seguir esta receita de moelas pato, mas sem o vinho. As espetadas são ainda mais simples. Sal, pimenta, e grelha. A estas, que se podem ver na imagem, acrescentei-lhe gomos de tomate, e acompanhei com um creme de batata (batata cozida e triturada com água da cozedura, azeite e salsa), cebola confitada e redução de sumo de laranja. Os fígados podiam ser de pato (normais, sem a engorda do foie gras, mas muito saborosos), e o creme podia ser de batata-doce. A imaginação cria sempre pratos mais sugestivos, mas esta foi uma refeição improvisada, e usou-se o que havia na cozinha.

Carlos Miguel Fernandes

Wednesday, August 27, 2008

Salmorejo

Esta desconfianza hacia el tomate puede parecer hoy increíble, cuando es el ingrediente fundamental de tantos y tan famosos platos, especialmente en el Mediterráneo, pero también en todo el mundo.
Rosa TOVAR e Monique FULLER, 3000 Años de Cocina Española

Quando as naus castelhanas encontraram os tomates na região do México (para onde migraram ainda na pré-história, desde a América do Sul) e os trouxeram para o continente europeu, os povos do Velho Mundo torceram o nariz. Talvez tenha sido devido à sua acidez, ou à sua cor, vermelho vivo, luxuriante e sugestão de muitas transgressões. A semelhança com a mandrágora, fruto maldito, também conhecido como Maçã de Satanás e Maçã do Amor (poma amoris), não ajudou, e a proscrição foi imediata. Os italianos ainda hoje lhe chamam pomodoro, a maçã de ouro, e a origem desta designação pode estar relacionada com a poma amoris, ou, segundo Stewart Lee Allen (em In the Devil’s Garden – A Sinful History of Forbidden Food), com as maçãs douradas do jardim das Hespérides, um éden de génese grega. A história da entrada do tomate no Novo Mundo está resumida neste nome com o qual os italianos baptizaram o fruto proibido das Américas. E foi também em Itália que o tomate começou a romper superstições e a entrar nas cozinhas dos europeus. Hoje, é incontornável na gastronomia mediterrânica. A cozinha andaluza não vive sem o seu sumo ácido e polpa insinuante, e o gaspacho é o rosto mais visível da relação entre o tomate e cozinha do sul de Espanha.

Mas se o gaspacho é, sem dúvida, a mais conhecida receita andaluz sustentada no tomate, e é já um dos ícones da gastronomia espanhola, há outro prato, também baseado no tomate, que rivaliza, na Andaluzia, com a sua popularidade. Chama-se salmorejo, e em Granada, fruto do peculiar sistema de tapas, é até mais frequente do que a célebre “sopa” fria.

salmorejo.jpg
Carlos M. Fernandes

Não há uma receita de salmorejo. Há uma receita por família. Mudam-se os ingredientes, alteram-se as quantidades, e algumas variantes têm honras de denominação própria, como o salmorejo cordobés. Mas o tomate, o pão, o alho e o azeite (e um pingo de vinagre, como eu gosto) não podem faltar, porque destes ingredientes, nos quais se sintetiza a cozinha mediterrânica, se faz o âmago do salmorejo, ao qual depois se adicionam os atavios, o ovo, o presunto, ou até pepino e pimento verde muito bem picados. Não havendo receita canónica é difícil descrever um procedimento rigoroso. Mas aqui ficam algumas sugestões: juntar pão e tomate na mesma quantidade (peso); adicionar o sal com cuidado, tendo em conta aquele que o pão já tem; juntar um pouco de vinagre de Jerez; ter algum cuidado com o alho, dois alhos para meio quilo de tomate é mais do que suficiente. Um fio de azeite, alguns minutos na trituradora, e já está. (Há um truque, que aprendi aqui na Andaluzia, para deixar o salmorejo muito cremoso: tempo na trituradora, dois, três, cinco minutos, o suficiente para que fique com uma textura aveludada.) Para a degustação ser perfeita só falta uma varanda com vista para Granada.

Carlos Miguel Fernandes

Tuesday, August 12, 2008

Comer nos EUA

Notas gastronómicas de uma curta viagem aos EUA.

Muito bom, o rabo encendido do Cuba, um rabo de boi saído de uma cozinha competente, imerso num molho rico que mostrou toda a delicadeza da carne sem exotismos fanfarrões. Chegou à mesa com arroz branco e feijão negro, e foi por mim regado com a brasileira Brahma. O restaurante fica no 222 da Thompson, no exuberante Greenwich Village, e ofereceu-me a melhor refeição da viagem, atenuando assim a tristeza que emana sempre da última tarde em Nova Iorque.

Bom, o borrego do Mekeren, um restaurante etíope, ainda em Village, na McDougall. Também muito recomendáveis, para quem gosta de sabores mais intensos e quentes, as amêijoas com erva-limão que comi no Singapore, sito em Mott Street, no coração da Chinatown nova-iorquina; e a galinha grelhada, enrolada em folhas de bananeira e cozida em vapor, que veio como entrada, também não desmerece alguns elogios. Noutro registo, as chamuças da cafetaria do Ruben Museum of Himalayan Art não estavam nada más e foram o aperitivo correcto para Nepal in black-and-white, de Kevin Bubiski.

Bolos de caranguejo. No Ray's Oyster Bar, rua Peachtree, Atlanta, com a pandilha granadina reunida em volta de um enorme prato com os ditos, calamares fritos, ostras com parmesão e espinafre, e gambas picantes. E em Nova Iorque, mesmo ao lado do Chelsea Inn (o hotel onde dormi), na rua 17, acompanhado por uma Hoegardeen. Deliciosos.

Para terminar, não posso deixar de referir as almôndegas da Taberna del Mozárabe, já em Madrid, na Plaza Conde Torreno. Foram “só” as melhores que comi nos últimos anos. Carne picada toscamente, alho abundante, molho de tomate com a acidez bem controlada, e cantatas de Bach como música de fundo. O final perfeito de mais uma viagem memorável.

Carlos Miguel Fernandes

Wednesday, February 06, 2008

À Mesa do Mundo - Huerto de Juan de Ranas, Terraço com Vista para o Alhambra

Sábado. Almoço com os olhos a abraçar o Alhambra. Passados três meses desde que baixei as malas em Granada, sabe bem, por vezes, reviver o papel de turista. E estar sentado numa mesa do Huerto de Juan Ranas, com o famoso mirador de San Nicolas pelas costas e o “castelo” a cobrir-nos a vista, é uma experiência que roça o onirismo. Um lujo, como dizia um cliente espanhol na mesa ao lado.

Para "chatear" ainda mais, a comida não estava nada má. Depois de uma entrada de presunto e queijo, esquecível (há melhor, muito melhor, em uma dúzia de tascas no centro da cidade), o bacalhau confitado com puré de maçã e a tagine de borrego não envergonharam a paisagem, nem o charmoso Albaycin, o bairro onde assenta este estimável Huerto de Juan Ranas. O serviço, claramente amador, não foi, no entanto, motivo para qualquer razão de queixa.

A noite, que em Granada é tão bela como o dia, foi embalada pelos mariscos e pelas tapas. Mas isso será tema para outro texto. Fiquem apenas com a imagem das conchas finas da cervejaria Los Andaluces, as quais nos renderam amena cavaqueira. Cavaqueira que, por sua vez, talvez venha a render ao nosso interlocutor, distinto taberneiro de uma das melhores casas de Granada, um Galo de Barcelos com dotes de meteorologista!


Carlos Miguel Fernandes

Thursday, January 03, 2008

Vinhos de Granada

A produção de vinho na província de Granada divide-se em três regiões, as quais se distinguem pelas suas características climatéricas (a proximidade simultânea da Serra Nevada e do Mediterrâneo contribui para a existência de micro-climas) e pelos seus solos: Contravieja-Alpujarra, Granada Suroeste e Norte de Granada. As vinhas chegam a situar-se a cerca de 1200 metros de altitude, e algumas estão sujeitas a forte influência do Mediterrâneo, pois ficam a uma dúzia de quilómetros do mar, em linha recta. As pequenas produções são abundantes. Estes factores contribuem para dar um carácter único e local (há vinhos que não saem da região e são apenas vendidos nas lojas e tabernas locais) aos vinhos granadinos. Durante os primeiros dois meses da minha estada em Granada, deixei-me fascinar por dois.

O Marqués de Cázulas 2006 é um vinho branco feito a partir da casta Moscatel de Alejandria, a qual, como o nome indica, se supõe ser originária do Egipto. O termo Moscatel engana e leva-nos a imaginar um vinho doce de alto teor alcoólico. Não é assim com este Marqués. Trata-se de um vinho fortemente frutado, sim, mas sem o sabor adocicado e característico da cepa, e com apenas 12, 5% de álcool. No La Molienda Verde, um moscatel de Málaga (15%) feito também com a casta Alejandria, já encontramos o dulçor desta uva. Sem um Tokaj na garrafeira (infelicidade!), provámo-lo, há poucos dias, com um patê húngaro de fígado de ganso . A combinação, aliada a companhia distinta e com bom gosto, resultou muito bem.

O Morama é um vinho da região Granada Suroeste e chega-nos à boca nas versões tinto e branco. O tinto é um monocasta feito a partir de Syrah. O branco, que provámos com um bacalhau confitado com azeite de azeitonas pretas secas, logo após o patê/moscatel atrás referido, é produzido a partir das uvas Chardonnay. É muito bom, mas é o tinto Syrah que me tira do sério. No Al Sur de Granada ainda se pode encontrar a produção de 2004, mas não sei por quanto tempo, pois só foram postas no mercado 3600 garrafas (o branco Chardonnay só teve direito a 1800). É um vinho rotulado como crianza (ou seja, envelhecido durante dois anos), mas talvez já se situe nas franjas desta classificação, a cair para o lado do reserva (em Espanha o envelhecimento é classificada com os rótulos joven, crianza, reserva e gran reserva). É envelhecido, durante o primeiro ano, em cascos de carvalho, e tem um forte teor alcoólico e um tom argiloso, e daí surge a dúvida quanto ao verdadeiro lugar do Morama Syrah na escala de envelhecimento. Que efeitos terão mais dois ou três anos de garrafa? Acho que vou guardar algumas, e em 2010 falamos. (O Fernando, gerente do Al Sur de Granada, disse-me que 2007 teve todas as condições climatéricas para se tornar num grande ano da produção vinícola de Granada; em 2010 teremos então um bom Syrah de 2007 para comparar.)

Marqués de Cázulas (Moscatel de Alejandria): 6, 50 euros
La Molienda Verde, Málaga (Moscatel de Alejandria) Málaga: 6, 50 euros (37, 5 ml)
Morama tinto (Syrah): 14 euros
Morama branco (Chardonnay): 12, 50 euros

No Al Sur de Granada, Calle Elvira, 150, Granada.

Carlos Miguel Fernandes

Wednesday, December 26, 2007

Literatura e Gastronomia – Enrique Vila-Matas e as Ostras

Seria eu capaz de algum dia escrever a partir de uma situação limite, tal como fazia sempre o meu admirado Copi? Isso interrogava-me eu naquele dia enquanto comia ostras com o escritor e Boutade e, enquanto as comia, por um lado recordava-me de Hemingway, que, quando tinha algum dinheiro em Paris, as comia “com o seu forte sabor a mar e o seu toque metálico que o vinho fresco limpava, deixando apenas o sabor a mar e a polpa saborosa”, e por outro lado não parava de pensar na sorte que eu tinha por poder comer aquelas deliciosas ostras, de as poder comer bebendo lentamente o frio líquido de cada uma das conchas e depois perder esse gosto com o límpido sabor do vinho branco seco.
Enrique Vila-Matas, Paris Nunca se Acaba

A minha relação com as ostras não segue o chavão normalmente associado a este lendário marisco. Ou se adora, ou se detesta, costuma-se dizer. Eu gosto de ostras, gosto até muito, mas não é um bicho que me faça sonhar durante meses com a longa viagem ou com o jantar de celebração que me permitirá provar o sabor a mar e a polpa saborosa. A qualidade, a frescura e até a variedade da ostra varia muito de restaurante para restaurante, e até de país para país. Por isso, não é com a simples evocação do literário molusco que salivo, mas com as recordações deste quando associadas a certos lugares, não só pela magia e exotismo dessas paragens, mas também pela suprema qualidade das ostras que lá provei. Estou a falar de dois lugares muito distantes um do outro. Aqui perto, temos Cacela-Velha, e a famosa tasca que enche como um ovo durante os concorridos dias de Verão algarvios, a qual, para além de umas ostras fresquíssimas, servidas cruas com pimenta e limão ao lado, também nos dá a provar as fantásticas amêijoas da Ria Formosa. Do outro lado do mundo chegam-me memórias ternas das melhores ostras que já comi. Foi no primeiro andar mercado do peixe de Busan (o Jagalchi), no restaurante, e foram-me servidas enquanto esperava pelo final da cocção do caranguejo-real de quatro quilos que uns minutos antes havia escolhido numa das bancas do mercado, quando este ainda se mexia no enorme aquário. Inesquecível.

Carlos M. Fernandes, Busan, Coreia do Sul, 2007


Carlos Miguel Fernandes

Monday, December 03, 2007

Al Sur de Granada

Al Sur de Granada é uma loja de produtos gastronómicos da região, com uma zona de degustação de queijos, enchidos e vinhos. Há também azeite, vinagre, mel e conservas, entre tantas outras coisas de apreciável qualidade. Às quintas-feiras, o Fernando, o gerente da casa, está disponível para uma prova de vinhos, entre 19 e as 20 horas. Já tratei do assunto, e provámos quatro vinhos de Granada, provenientes das suas três áreas principais de produção, com explicação detalhada das diferentes características dos vinhos e regiões. Uma casa que nos transmite felicidade.


Carlos Miguel Fernandes

Monday, November 26, 2007

À Mesa do Mundo VI (Rias Baixas)

Voltei ao Rias Baixas, o restaurante galego de Granada que referi no texto anterior (que fica na Plaza de los Campos, para ser mais preciso). E voltei em boa hora, porque o marisco provado estava perfeito. Os camarões galegos (é aquilo que em Portugal se chama camarão de Espinho; mas falo do verdadeiro, e não daquela imitação com o tamanho de uma unha) são caros mas cumpriram o seu papel enquanto esperávamos pela zamburiñas, desta vez ainda mais frescas e saborosas, feitas à la plancha, a melhor forma de conservar o seu sabor forte e ligeiramente adocicado. Depois, vieram os berbigões no vapor, enormes, inchados, a estalar na boca e largar todo o seu sabor a mar num pranto generoso. Amêijoas de Carril? Não há?! Desilusão. Há algum tempo que não provo as enormes amêijoas galegas, cruas e temperadas apenas com uma gota de limão. Atiremo-nos então às outras que estão na “montra”, e que parecem ter bom tamanho; à galega, claro, pois à la marinera já tem molho redundante se o bicho for bom. E era bom, esplêndido, a encher a casca, e a competir com as recordações das Rias algarvias. Uma grande mariscada.


Não se está mal no Rias Baixas, que consegue apresentar a qualidade a que já nos habituaram os restaurantes galegos, mesmo quando se encontram fora da sua região. O apreciador de marisco que visitar Granada não sairá de lá desapontado. (Nota: ao fim-de-semana parece ter maior variedade de mariscos.)

Carlos Miguel Fernandes

Wednesday, November 14, 2007

Comer em Granada

Aos poucos vou compondo o meu roteiro de Granada. Começa-se pelas tapas, sempre pelas tapas, pois estamos na Andaluzia, e Granada é mestre em região de mestres do pequeno petisco. Depois vão-se juntado outros pontos de interesse. A marisqueira galega é uma instituição em qualquer cidade espanhola. Para já, confio naquela que encontrei na Calle Nava, perto do clássico Los Diamantes. Provaram-se — e aprovaram-se! — as zamburiñas, claro, porque quando elas estão no montra não as podemos deixar fugir.

Carlos Miguel Fernandes