Monday, April 04, 2011

Albufera, o berço da Paelha

De la taberna de Cañamel, que era el primer establecimiento del Palmar, salía un grupo de segadores con el saco al hombro en busca de la barca para regresar a sus tierras. Afluían las mujeres al canal, semejante a una calle de Venecia, con las márgenes cubiertas de barracas y viveros donde los pescadores guardaban las anguillas.

Vicente Blasco Ibañez, Cañas y Barro

Só queria comer uma paelha verdadeira, com caracóis e enguias, mas olhavam-me de um modo estranho e algo paternalista, dizendo que a paelha não tem enguias, que isso é o all i pebre, e que uma paelha leva — dependendo de quem nos fala — frango/coelho/marisco/ mistura de carne e marisco. Pois é, mas está tudo nos 3000 años de Cocina Española, de Rosa Tovar e Monique Fuller. E qualquer espanhol mais versado na História da gastronomia sabe que a paelha clássica tem enguias, caracóis e judias verdes e é uma invenção dos pescadores da Albufera, um lago natural que está a poucos quilómetros a sul de Valência, onde se cultiva o arroz essencial para este prato, o Bomba. Lá fui então para Palmar, na margem oriental da Albufera, sem grandes expectativas. Assim foi: paelha de coelho, um all i pebre (alho e pimentão) de enguias como entrada, e um Rioja reserva de 2004, do qual me esqueci dos detalhes (talvez por tomar quase sempre partido pelos Ribera). Para comer a tal dos caracóis e enguias há que ir à Comunidade Valenciana profunda, receio. Lá chegaremos. De qualquer forma, não foi tempo perdido, e valeram a pena as voltas, entre o táxi e a boleia de um camarero; na Andaluzia não encontro uma paelha como aquela que me puseram em Palmar, no Club de Pescadores. E a dois passos do Mediterrâneo, quando parece que ouvimos Joan Manuel Serrat, é outra coisa: soy cantor, soy embustero, me gusta el juego y el vino, tengo alma de marinero… ¿Qué le voy a hacer, si yo nací en el Mediterráneo?

Tremoços

César Aguilera, na sua História da Alimentação Mediterrânica, diz que, na última parte da época medieval, foi o alimento da fome. Em Limpieza de Sangre, a segunda aventura de Alatriste, Arturo Pérez-Reverte coloca o Capitão e o seu protegido Iñigo a comer pinhões e tremoços na Plaza Mayor de Madrid, enquanto assistem a uma corrida de touros. Estávamos em 1623, quando Portugal era Espanha e Filipe era terceiro e quarto. Pouco a pouco, os tremoços foram desaparecendo dos hábitos alimentares dos espanhóis, e, mesmo hoje, apesar de serem presença habitual em qualquer supermercado, ainda não os vemos nas barras de Madrid ou de Sevilha, nem à laia de aperitivo, condição natural do tremoço (e para mais não dá) e hábito que, diz-nos outra vez Aguilera, nos chegou desde Bizâncio. É verdade que no Campo del Principe há uma casa — apropriadamente chamada Altramuce — onde nos põem esta espécie de milho com esteróides com a segunda ou terceira tapa, e no velho Tabernaculo da calle Navas também costumam aparecer quando nos caem em sorte as tortillitas. Mas é em Lisboa que os tremoços são as estrelas das cervejarias, a “tapa” típica e solitária da imperial. Não há fome que não dê em fartura.

Carlos Miguel Fernandes