Thursday, April 26, 2007

Reypenaer

Chama-se Reypenaer, é um Gouda com dois anos de maturação e um dos meus queijos de eleição. O Gouda é um queijo holandês produzido com leite de vaca e carrega já uma longa história que remonta ao século VI. A partir do século XII começou a ser exportado e hoje é um queijo com uma respeitável popularidade, e que se encontra espalhado por todo o mundo. Quando jovem, é firme mas flexível. O envelhecimento dá-lhe uma consistência mais dura, alguma granulação e cristais que fazem lembrar o parmesão. Com doze a dezoito meses de envelhecimento é também utilizado para cozinhar, ralado, mas o Reypenaer V.S.O.P. de dois anos não pode ser usado com tanta leviandade. Estamos perante uma das mais preciosas jóias da cultura queijeira do mundo, um produto que já franqueou as portas da exigente cozinha do El Bulli de Ferran Adrià. Cortado em fatias muito finas, entra na boca discretamente, para depois eclodir com num travo persistente a frutos secos e noz-moscada, libertando também uma ligeira sugestão de fumeiro. Compro-o sempre que passo pelo aeroporto Schiphol de Amsterdão, mas como tenho a felicidade de fazer parte de uma família que agora se estende até à Holanda, sou brindado, com alguma regularidade, com uma cuidadosa selecção de queijos holandeses. E os queijos holandeses, caros leitores, são um caso sério. Não é só este Reypenaer que deslumbra.


Carlos Miguel Fernandes

Monday, April 09, 2007

Brincadeiras de Primavera

(Com este tempo instável que nos tem visitado só nos resta mesmo brincar às Primaveras.) Recentemente, e para acompanhar o primeiro gaspacho do ano, reduziram-se as doses ao mínimo, e compôs-se um prato de amostras mediterrânicas. Para além do gaspacho, decorado com um camarão, fez-se ainda um ovo de codorniz escalfado e temperado com flor de sal, pimenta branca e paprika, uma pequena fatia de pão com tomate e encimado por uma mistura de pimento vermelho e coentros temperada com vinagreta, e umas azeitonas baseadas numa receita de Jose Andres, com pimento vermelho, anchova e alcaparras, tudo banhado por uma vinagreta com alho e casca de laranja.


Uma segunda tentativa, neste último fim-de-semana, melhorou um pouco a coisa, acrescentando-lhe um copinho com queijo de cabra submergido em azeite com grãos de pimenta e tomilho, e substituindo o pão do pimento picado por uma tosta de massa com cebolinho feita em casa. O gaspacho, para poder ostentar o nome sem vergonha, terá que esperar pelo verão. E, mesmo assim, lá terei que esquadrinhar Lisboa em busca dos tomates certos, ou então fazer uma visita ao Algarve.

Carlos Miguel Fernandes

Monday, April 02, 2007

Comer em Busan II
Os portos marcam as cidades, cravam-lhes as unhas e não costumam deixar espaço para outras identidades. O que distingue Busan de Seul é a imensa linha de água onde descansam os barcos, de recorte fractal e pontuada por ilhotas, e cuja influência se prolonga pela cidade adentro, transformando-a em lugar de fronteira, e oferecendo-lhe um cosmopolitismo que não é feito de taxistas indianos nem de estudantes do “erasmus”, mas de marinheiros russos, turistas japoneses, armazéns chineses e trabalhadores do sudeste asiático. A Rua Texas, assim designada por ser um lugar pouco aberto às coisas da lei e da ordem (mas, pelo menos durante o dia, a visão é um pouco exagerada), alberga o comércio chinês e os prostíbulos russos. Russian vodka!?, sugerem mulheres louras à porta de lugares esconsos que despejam luzes arroxeadas e deixam entrever texturas de cetim barato e gasto por corpos que desejam desaparecer na penumbra. Não ver e não ser visto; parece ser este o lema dos pardieiros das cidades portuárias, lugares onde os perseguidos pela lei ou pelo passado desejam perder-se, perder o rasto do mundo que terminou no acto do desembarque. Busan, mesmo fazendo fronteira apenas com o mar, não escapa a um certo ar de Tijuana oriental. Mas a insegurança e o assédio que se observam noutros lugares fronteiriços não existem em Busan. Em Busan vive-se em paz.

A atracção principal da cidade encontra-se a sul, junto ao mar e um pouco afastada do centro, conquanto a zona esteja longe de ser pouco movimentada. O mercado de Jagalchi é a alma duma enorme urbe com cinco milhões de habitantes que cintila de actividade virada para o Pacífico, para um mar riquíssimo que a abastece com o melhor peixe e marisco que qualquer faina pode encontrar. O espectáculo começa no piso térreo do edifício que abriga o mercado, e prolonga-se pelas ruas adjacentes, onde as enguias se mexem furiosamente em tinas de plástico, os bivalves esguicham água e os polvos se passeiam por entre os pés dos transeuntes até que o seus donos os ponham na ordem. A oriente, o mercado de peixe seco continua a festa marítima, enquanto a norte o mercado de Gukje prolonga uma intensa zona de comércio, a qual termina mais acima ainda, na simpática rua dos alfarrabistas, que já nos recebe com serenidade.

No edifício do mercado parecem estar os animais mais nobres. Vivos, sempre vivos! Amêijoas, vieiras, búzios, caranguejos, polvos, pregados, robalos, enguias, e até pequenos tubarões; todos são escolhidos pelo cliente enquanto ainda se movem numa água em constante renovação que vai produzindo um revigorante som de cascata. Água, chão, paredes, tudo apresenta uma limpeza irrepreensível, soltando um cheiro puro a mar que nos invade os sentidos, desperta a gula e impele para o segundo andar do mercado. Foi aí que, à mesa, e sentados no chão em pose coreana, registámos as imagens dos caranguejos que podem ser vistas na entrada anterior. Mas o melhor ainda estava para vir, um enorme caranguejo-real vermelho, que bateu nos 4,2 Kg quando foi pesado no andar de baixo; tem razão quem defende que a sua carne é melhor do que a da lagosta! A este monstro juntou-se um caranguejo de menor dimensão (ver a quarta imagem da entrada anterior), mas de sabor igualmente intenso e agradável, e umas ostras fresquíssimas, cruas, e que foram, sem dúvida, das melhores que já comi. Ao lado, os camarões, os mexilhões, os búzios, o sashimi e outros petiscos são acompanhamento habitual nas mesas do Jagalchi; um couvert de luxo que acaba por passar despercebido no meio de bichos como o caranguejo-real. Tudo se conjugou numa mariscada inesquecível, um jantar sem grandes malabarismos culinários mas cuja matéria-prima, perfeita e bem tratada, não deixará tão cedo cair no esquecimento, fazendo-o ombrear com recordações muito mais sofisticadas. (Alguns dias antes já haviam sido provados os pequenos caranguejos que também abundam no mercado, uma espécie de navalheira mais gorda e de casca mais áspera, e que provou ser também material de qualidade suprema. E da cozedura destes caranguejos e dos outros nada há a apontar. Não se pedia nem mais nem menos minutos; aqueles senhores sabem o que fazem.)

O exterior do mercado também ferve de agitação culinária. A primeira fotografia da entrada anterior foi apanhada numa das muitas tascas que rodeiam o mercado de Jagalchi, a poucos metros da água. Aí, a especialidade são as enguias pequenas, esfoladas e cortadas a pedido, chegando às brasas do centro da mesa em pequenos troços que ainda se debatem em espasmos musculares post-mortem. Mas as vieiras, caros leitores, são um caso sério! Nem da Galiza trouxe tais recordações da concha de Santiago.
A segunda imagem foi obtida no centro da cidade, longe do mar, numa marisqueira onde jantei duas vezes (para além do segundo piso do mercado, foi o único restaurante que repeti na viagem à Coreia do Sul). O marisco, de qualidade irrepreensível, chegava vivo à mesa, onde era depois cozinhado na chapa, ao natural ou com um molho de cebola e pimentão. A concha que se vê na fotografia foi uma das grandes surpresas gastronómicas da viagem. Quando esperava um bicho rijo e desenxabido (as conchas grandes, tal como os búzios, não costumam ser muito generosas no sabor), encontrei com uma textura suave e um sabor rico.

Não houve tempo para muitas aventuras. Recordo ainda, com alguma saudade, uma simples mas deliciosa sopa de peixe que comi num restaurante do centro da cidade, e o peixe (primorosamente) grelhado com qual me deleitei em Okpo, na ilha Geoje, a quarenta e cinco minutos de Busan. Este, meia hora antes de chegar à mesa, ainda se passeava no aquário do restaurante arrastando o anzol com o qual havia sido capturado. Na mesa portou-se com galhardia, pois na grelha estava alguém que sabia trabalhar. A pele estava bem tostada, sem apresentar sinais de secura, e a carne junto à espinha estava quase, quase, crua, condição limite que só um peixe muito fresco aguenta. O tempo aquecera, e pela primeira o casaco e a camisola podiam descansar na cadeira da esplanada. Nem o som metálico e periódico que vinha do outro lado da baía, do estaleiro, conseguiu perturbar uma tarde perfeita, umas horas de descanso que o corpo já pedia depois de muitos quilómetros percorridos através das ruas de duas cidades desmesuradamente grandes. Foi feita de coisas simples, esta incursão aos prazeres de Busan.

Carlos Miguel Fernandes