Tuesday, February 27, 2007

Alcachofras e Portobello com Ervas Frescas

Os ingredientes desta receita foram adquiridos para um prato com outras ambições, que incluiu um ovo escalfado, ervilhas tortas, azeite de cebolinho e molho de framboesas e Porto. Não correu mal, mas pretendo ainda testar a receita com um molho de foie gras antes de a divulgar. Com a alcachofra e o cogumelo portobello que haviam sobrado do ensaio fez-se no dia seguinte um prato mais simples, de execução rápida e sabores mediterrânicos.
Começa-se por arranjar a alcachofra, tarefa delicada que consome a maior parte do tempo dedicado à receita. Tiram-se as folhas exteriores, corta-se o pé (que se pode aproveitar com alguns cuidados) e o topo, e retira-se com cuidado, do coração, tudo o que mostrar consistência de cardo. Corta-se a alcachofra (o que dela restou!) em troços grosseiros e faz-se o mesmo com o cogumelo. Laminam-se dois dentes de alho que se fritam em quatro colheres de sopa de azeite extra virgem, juntamente com um ramo de hortelã e a alcachofra, até que esta última comece a ficar tenra. Nessa altura junta-se o cogumelo, tempera-se com flor sal e três voltas do moinho de pimenta, e deixa-se cozinhar até apresentar a consistência desejada. Trinta segundos antes de retirar do lume polvilha-se a mistura com três colheres de sopa de cebolinho e salsa, tudo muito bem picado. O empratamento pode ser feito como se vê na imagem, com troços de cebolinho para decorar e um pouco de endro seco e paprika em redor da amálgama de cogumelos e alcachofra (a paprika serve apenas para dar uma cor mais forte a um conjunto dominado pelos tons da terra). As quantidades descritas servem duas pessoas.
O resultado é leve e agradável e presta-se a fragmento de outras realizações. Para além da receita com ovo e foie gras que imaginei, tenho ainda a convicção de que estes cogumelos com alcachofras resultam bem com um peito de pato salteado, mal passado e fatiado.

Carlos Miguel Fernandes

Sunday, February 18, 2007

À Mesa do Mundo - IV (La Taberna del Gourmet, Alicante)

Nos últimos anos, viagens frequentes à Galiza, à Andaluzia e ao Algarve fizeram-me descobrir as virtudes da gamba e dos camarão frescos. O bicho é tão bom, mesmo depois de passar pelo congelador, que nos esquecemos que o estágio no gelo é sempre um amortecedor de sabores. Comê-los frescos, desde a pequena gamba da costa algarvia ao gigante carabineiro, é experiência de outra dimensão, um regalo para os sentidos. Tudo começa no cheiro que exala da cabeça acabada de arrancar, júbilo de odores marítimos que nos prepara para a textura suave e viva que se segue. Em setembro do ano passado, em Alicante, provaram-se umas gambas rojas, frescas, sublimes.
Entrámos na Taberna del Gourmet (calle San Fernando, 10) ao fim da tarde, antes do rebuliço espanhol da hora de jantar. Situada no “casco” histórico da cidade, já muito perto da marginal mediterrânica, é discreta no exterior e abriga um ambiente moderno e decorado com sobriedade, dividido, como é habitual em Espanha, num espaço de barra e tapeo e numa sala de jantar. Ficámos pelo balcão, que nos oferecia o espectáculo das matérias-primas e da cozinha mesmo em frente. Com duas cañas pedidas e a lista em frente dos olhos verificámos que as ofertas eram variadas, interessantes, com preços ligeiramente acima da média de Alicante, mas justíssimos no caso de os produtos se revelarem de primeira qualidade. E foi isso que aconteceu. Para auscultar a cozinha e a frescura da matéria, pedimos choquinhos grelhados. Estes, muito pequenos, vieram cozinhados no ponto certo e acompanhados por azeite de salsa. Com as entranhas intactas, como se quer quando os choquinhos são frescos, encantaram com a sua simplicidade e sabor não corrompido pelo tempo. A Taberna cumpria e dizia-nos que nos podíamos atirar às gambas com segurança. E lá vieram elas, com um pouco de azeite no qual são levemente salteadas, ficando no limiar do cru, o que realça sabores e mantém toda a água no interior de um miolo mole mas, ao mesmo tempo, consistente. Da cabeça, para além do cheiro inebriante, solta-se um suco abençoado que se sorve ruidosamente sem pudores. A caña já fora substituída por um alvarinho servido a copo e o dia já não podia ser lembrado como menos do que perfeito. Abandonámos o local com alguma contrição, mas Espanha convida ao trânsito e havia que aproveitar a última noite na cidade para conhecer outros lugares. A poucas dezenas de metros da Taberna del Gourmet encontrámos a tasca galega onde, no dia anterior, havíamos sido felizes com cocochas, pimientos de padrón (unos pican e outros no) e o melhor lingueirão que nos tocou os dentes nos últimos anos. Passámos-lhe ao lado, mais uma vez com grande pena, mas com a certeza de que, à mesa (e não só!), se está muito bem em Alicante.

Carlos Miguel Fernandes

Thursday, February 15, 2007

Gambas al Ajillo

Como diz José Andrés, esta es la tapa por excelencia. É tão célebre que até já ultrapassou as fronteiras e assentou arraiais nas barras portuguesas. Infelizmente, só foi seguida pela salada russa — levada para Espanha após a II Guerra Mundial pelos soldados espanhóis que combateram na Rússia — e pouco mais; fazem-nos falta, as tapas.
Costumava prepará-las como se encontram nas tascas: com gordura, muita gordura. Depois da fritura em azeite e alho, leve, inundava-as com óleo de amendoim e levava-as ao forno até ferver. Ficavam muito bem, mas por vezes o excesso de gordura cansava. Agora, confecciono as gambas al ajillo de acordo com a seguinte receita:

Para quatro pessoas, descascam-se doze gambas (40/60) que se temperam com sal. (Costumo deixar a cabeça, mas sei que há tapeos mais despreocupados que não acolhem perdas de tempo; é só picar). Aquecem-se cinco colheres de sopa de azeite extra virgem, no qual se vão fritar quatro cabeças de alho trituradas (ou muito bem picadas), com muito cuidado, para não queimar. No ponto em que o alho começa a alourar, juntam-se as gambas descascadas. Salteiam-se durante dois minutos, virando-as algumas vezes, e retiram-se para o prato de servir, enquanto o molho retorna ao lume. Quando este estiver novamente a ferver deitam-se dois goles generosos de Vinho do Porto, o qual deverá imediatamente flamejar. Depois da chama apagar deixa-se reduzir durante um minuto. Regam-se as gambas com o molho, polvilha-se com salsa picada e está pronto para ser servido. Notarão os mais atentos que falta aqui a malagueta. Fica como opção. (Recentemente temperei as gambas com merquén, uma mistura de especiarias chilena, ligeiramente picante, que inclui malaguetas secas, sementes de coentros secas e cominhos. Foi um pequeno toque, mas fez a diferença.)

Fora de casa
Não é muito sensato avaliar e comparar casas sob o pretexto de petisco tão simples. O local, a companhia, a altura do ano, tudo coopera e conspira para nos trair a memória e influenciar a apreciação. E o tempo, na gastronomia, não é bom conselheiro; por vezes, só serve para incentivar os elogios. Mesmo assim, arrisco evocar e adjectivar as gambas al ajillo perfeitas que comi na calle Mateo Gago, em Sevilha, muito perto da Giralda. O nome?, não registei, lamento. Mas procurem, entrem em todas as portas, trinquem todos os petiscos. Há outra forma de estar em Sevilha?
Carlos Miguel Fernandes, Sevilha, Dezembro de 2005

Carlos Miguel Fernandes
P.S. Doze gambas para quatro pessoas parece pouco, mas presume-se que o tapeo seja farto e que as gambas não apareçam sozinhas na mesa. Como entrada para uma refeição, a dose de gambas pode e deve ser reforçada.

Thursday, February 01, 2007

Coelho Frito com Migas de Espargos e Ovo Escalfado

A ideia foi ditada pelos restos de refeições anteriores: nacos de coelho que sobraram de um estufado, e pedaços de espargos verdes que excederam as necessidades de um risotto. O caminho seguido foi o do Sul, pretendendo-se dar um carácter alentejano ao prato. Começou-se por temperar o coelho com sal, pimenta (moída na altura), um decilitro de vinho tinto, alho esmagado e três colheres de sopa de paprika (húngara). Faltou o louro, por desleixo do cozinheiro, e faltou tempo, por atraso do mesmo: a carne descansou no tempero durante apenas meia dúzia de horas, quando se pretendia um dia inteiro. (E estas foram apenas as primeiras falhas na preparação do prato.) Na hora da confecção, fritaram-se os pedaços de coelho em gordura de ganso. Entretanto, as migas já estavam a ser amanhadas. O processo iniciou-se com o pão seco (cerca de duzentos gramas) a ser embebido na água com sal que havia cozido os espargos até estes ficarem tenros. Depois, veio um refogado com azeite e alho esmagado. Os dentes de alho foram retirados quando alouraram e no seu lugar colocaram-se os espargos picados, que fritaram, no azeite, durante um ou dois minutos. Juntou-se o pão com um pouco da água onde este se encontrava imerso. Quando a água se evaporou acrescentaram-se uma ou duas colheres de sopa da gordura de ganso ligada com os sucos do coelho, mistura que já começava a emergir da frigideira ao lado, e um dente de alho muito bem picado. Despejou-se mais um pouco de água nas migas, e quando esta desapareceu, juntou-se um ovo e duas colheres de sopa de coentros picados, mexeu-se bem e retirou-se do lume. Ao lado, a carne do coelho já apresentava brandura suficiente para sair do lume. Estava na hora verificar o estado do ovo.
O ovo escalfado que acompanhou o coelho e as migas foi inspirado nesta receita do Avental do Gourmet (aconselha-se a sua leitura como complemento a esta abordagem). A execução é mais simples do que parece. Começa-se por estender película aderente (30 x 30 cm para cada ovo é mais do que suficiente) sobre um recipiente côncavo. Besunta-se o centro com uma colher de sopa de azeite, e por cima deita-se o ovo, com cuidado para a gema não se desfazer. Tempera-se com uma pitada de flor de sal, duas ou três voltas do moinho de pimenta (usei branca, com receio da força da pimenta preta), um pouco de paprika, meio alho picado (muito, muito bem picado) e uma colher de sopa (rasa) de coentros frescos e picados (também se pode dividir os temperos, deitando uma parte antes de o ovo ser posto sobre a película). Fecha-se a película aderente com um arame, formando um bolsa da qual se retira o ar e leva-se a cozer no vapor durante cinco minutos (com este tempo a gema ficou no ponto perfeito, escorrendo suavemente, mal a faca arrancou o primeiro pedaço do ovo). Entretanto, torra-se uma fatia de pão, que se rega com azeite de coentros (triturei uma colher de sopa de coentros frescos com duas de azeite; um pão catalão faria melhor figura nesta posição e evitava o excesso de coentros no prato, mas a altura do ano não nos dá tomates com qualidade suficiente). Sugere-se o empratamento que pode ser visto na imagem ao lado, com o ovo às cavalitas do pão, o qual, por sua vez, se estende por cima das migas.


Houve falhas e ausências neste prato. Para além do descuido no tempero do coelho, a fraca qualidade do pão prejudicou as migas. Os espargos também não ajudaram, pois eram despojos de outra refeição e as partes nobres já haviam sido bem aproveitadas. Por fim, o pão catalão poderia ter dado outros aromas e outra cor à composição, oferecendo a acidez do tomate — outro sabor de eleição da cozinha do sul — a este prato de tons alentejanos. Mesmo assim o resultado não desmereceu o esforço, e com mais algum cuidado pode ser receita a ter em conta. Vamos esperar pelos tomates de verão.

Carlos Miguel Fernandes


P.S. Não fui muito explicíto em relação às quantidades, mas posso acrescentar que o prato foi elaborado para duas pessoas.