Thursday, December 28, 2006

Livros do Mundo – I (Cozinha extremeña)

De Mérida vieram dois livros de gastronomia acima da média que enriquecem a biblioteca (ver aqui). O Recetario de Cocina Extremeña é, como o nome indica, um lista de receitas tradicionais da província espanhola da raia. A lista revela uma gastronomia nascida da terra, sazonal, com algumas especialidade circunscritas. Dos animais aproveita-se tudo, e as ervas aromáticas dão vida a pratos que, de outra forma, não teriam carácter inolvidável. Nas receitas mais simples encontramos as setas (setas de cardo, setas en caldereta, setas en salsa, e outras receitas), os espargos (com ovos escalfados, com huevo duro, ou guisados), e outros produtos da terra, como as judias, as acelgas, as favas e as criadillas de tierra. O cojondongo e o zarangollo são dois clássicos desta secção. Nas sopas, à miríade de gaspachos juntam-se, entre outras, a sopa de ajo, a sopa de vigilia, com bacalhau, a sopa de habas (feijão grande), e a sopicaldino, com galinha, presunto e toucinho.

Dos “arrozes” destaca-se o de lebre, que ilustra bem o peso da caça na cozinha extremeña. Os cozidos vão desde o alentejano, que, como o nome indica, é confeccionado com grão, ao cocido extremeño da Cofradia (entidade que edita o livro), passando pelo clássico olla podrida. As frituras, ao contrário das andaluzes, baseiam-se na carne de aves, no presunto, na batata e no bacalhau. Este último é honrado com várias receitas na secção do mar; e o cação, tal como no vizinho Alentejo, também entra na lista, com a interessante receita cazón con laurel tostado. Dos rios, temos a lampreia, a truta e as enguias, entre outras espécies. (A lamprea a la antigua extremeña não engana; é prato nobre, com toda a certeza.)
As receitas de carne são infinitas. Há o cabrito assado, frito ou picado; o porco a oferecer todo o seu corpo para um receituário próprio; o borrego a entrar nas caldeiradas e nas chanfainas. Do gado bovino destaca-se a língua, os callos (dobrada) e o rabo de boi. O javali, a codorniz, a perdiz e a já citada lebre são alguns dos bichos que animam a secção da caça.
O item mais caricato surge no final do livro, no meio das azeitonas, dos caracóis, das rãs e da sopa de canónigos, e arquivado no capítulo “Vários”. Falo do lagarto, produto raríssimo nos dias de hoje devido à proibição da sua captura. Ao contrário do que aconteceu com as rãs, cuja importação resolveu o problema, as restrições ecológicas remeteram o entomatá de lagarto e o lagarto en salsa de almendras para o registo das recordações remotas.

Deixo-vos com a transcrição de um clássico da cozinha extremeña, o cojondongo (pág. 34):
Tuvo su origen en la “macarraca”, plato desprovisto de todo artificio, que se tomaba a media mañana en los dias calurosos y qye se hacia sobre el terreno: bien ene l tajo del segador, o en hato del pastor; ya que unos e otros llevaban consigo los ingredientes: agua fresca en un barril de barro de Salvatierra, aceite, vinagre, sal y ajo, en aceiteros y saleros de astas de buey e pan, que al ser integral y de trigo duro, se conservaba durante muchos dias en costales de lona.
Solo habia que majar en el “dornillo”o cuenco de encina el ajo, el pan y abundante aceite. Se le añadia el vinagre, la sal y el agua y...a comer. A veces, se migaban con “sopones”, es decir, con trozos de pan gruesos.
Se acompañaba de algún racimo de uvas o aceitunas. Téngase en cuente que su misión era refrescar, pero sin llenar en demasia, pues había que continuar la faena.
Más tarde, se suprimió parte del agua, quedóse una pasta clarita a la que se incorporó un abundante picado (nunca majado) de tomates, pimientos y cebolla.
Este es el actual cojondongo, que sigue cumpliendo su primitiva misión: refrescar.
Pero al llevar un buen aporte vitamínico, se torna sin acompañamento, mas bien como entrada de una comida seria.

Carlos Miguel Fernandes

Wednesday, December 13, 2006

À Mesa do Mundo – III (Altair)

(A poucos dias de regressar ao Altair de Mérida, deixo aqui, com pequenas revisões, o texto escrito e publicado no No Mundo há cerca de três anos, sobre a primeira visita ao excelente restaurante extremeño.)


Mérida, fundada em 25 a.C., cresceu à beira do Guadiana e tornou-se na próspera capital da província romana da Lusitânia. As ruínas romanas são o orgulho da cidade: o anfiteatro, o teatro, o hipódromo, o Arco de Trajano, o aqueduto, a ponte que atravessa o Guadiana e possíveis tesouros ainda escondidos, tornaram Mérida num paraíso para os arqueólogos e uma surpresa para aqueles que pasmam diante das demonstrações da força do engenho humano. O anfiteatro, em particular, é admirável na imponência que ainda hoje, em ruínas, nos assombra. E a luz azulada que, naquela tarde de inverno, as suas colunas de mármore reflectiam, transmitia a serenidade que nos costuma assaltar quando a fragilidade da existência é posta em evidência diante da dimensão temporal da civilização humana.


Estávamos em Espanha, e em Espanha a liberdade de escolha do adepto de jantares sem horas marcadas é maior. Por isso, entrámos no Altair, sito na Avenida José Fernández Lopez, junto ao rio Guadiana, por volta das vinte e duas e trinta, e lá ficámos nas três horas seguintes. As propostas da carta não desmereciam a nossa atenção, mas optou-se pelo menu degustação que, embora servido apenas para mesas completas — quatro pessoas — segundo indicação da carta, foi gentilmente confeccionado para o nosso pequeno grupo de três convivas. Para a abertura foi requisitada a presença do Bombay Saphire, versão 47% de álcool, acompanhado com água tónica. Não, não é apenas um capricho etílico. De acordo com textos por nós consultados há alguns anos, e dos quais não temos registo, só uma alta percentagem de álcool permite a libertação de todos os sabores e aromas contidos num gim. A menor percentagem de álcool de outras versões é determinada pelos impostos. Ainda do departamento espirituoso, mas já com a carta de vinhos aberta, seleccionámos o Rioja Vina Salceda Crianza, de 1999, para nos acompanhar durante a refeição. É, aliás, o conjunto de vinhos da região de Rioja que se encontra maioritariamente representado nesta carta de vinhos dividida por regiões e com umas generosas dezenas de exemplares.

O menu degustação é composto por uma entrada, uma sopa, um prato de carne, um prato de peixe e uma sobremesa. É, no entanto, tradição da casa oferecer uma pequena introdução ao festival que se avizinha. Começou-se com um creme de cenoura com uvas acolitado por uma pequena malga com miolo de berbigão inserto em cubo de gelatina, conjunto que satisfez o palato, eliminando qualquer cepticismo que ainda nos pudesse incomodar, e preparou o terreno para o deslumbramento que estava para vir. Os espargos com ovo escalfado e endívias estavam perfeitos; o tratamento dado ao ovo, de uma simplicidade desarmante, só está ao alcance de grandes mestres. O caldo de beterraba com lulas, embora correctíssimo e de sabor inatacável, não foi capaz de atingir os níveis de prazer proporcionados pelo resto da refeição. Logo a seguir, o lombo de robalo salteado, com batata assada no forno, portou-se como a sua frescura o exigia: exemplarmente. O auge, o zénite, o acme da refeição no restaurante Altair estava reservado para o ossobuco de cervo. A carne tenra, o tempero sem mácula e o tutano a despertar papilas que nunca haviam dado ao cérebro sinal da sua existência, tornaram as pequenas peças da perna do animal na estrela da noite.

A sobremesa prometida pelo menu, banana frita com creme de chocolate e gelado, foi antecedida por mais um regalo da casa: bolas de chocolate envolvidas por queijo de cabra e, provavelmente, com um pequena fritura em óleo muito quente. A combinação entre o chocolate e o queijo, perturbador para as mentes mais conservadoras, resultou numa experiência gastronómica inolvidável. Repeti-la exigirá paciência e prática, em casa, ou demanda, fora dela, dada a delicadeza exigida no tratamento deste conjunto de sabores. A refeição prolongou-se durante mais uma hora, entre cafés e orujo de ervas. O serviço de mesa, feminino e eficiente, foi, acima de tudo, discreto. Que mais se poderá exigir?

O Altair foi criado pelos proprietários do restaurante Atrio de Cáceres. Sabendo que o Atrio conquistou este ano a sua segunda estrela no guia Michelin, não é muito especulativo pensar que, daqui a alguns anos, a prestigiada instituição francesa poderá começar a premiar o esforço e o engenho dos responsáveis pelo Altair. Por enquanto, os seus dois anos de vida não lhe permitem a tanto almejar, pois a manutenção da alta bitola, durante anos, não é peso de somenos na avaliação dos exigentes inspectores Michelin.


Carlos Miguel Fernandes


P.S. Parece que o Altair ainda não conseguiu a sua estrela Michelin. Tendo em conta os estranhos critérios da instituição francesa, não é pormenor que (n)os deva preocupar.

Monday, December 11, 2006

Sopa de Lagostins da Islândia

Todas as receitas clássicas estão sujeitas a interpretações e mutações. Surgida na terceira vaga da gastronomia islandesa, a sopa de lagostins (humarsúpa) não deve ser excepção. A versão que aqui apresento, encontrada no livro Cool Cuisine de Nanna Rögnvaldaradóttir, pode ser apenas uma de entre muitas, e foi experimentada há poucos dias com os lagostins dos mares do norte substituídos por um punhado de camarões e uma posta de corvina (podem ser usados outros peixes e mariscos, desde que tenham sabor suficientemente forte para ombrear com a personalidade “quente” do caldo). Exceptuando uma pequena redução na quantidade de legumes, segui com rigor o resto da receita, a qual reza assim:
Depois de reservado o “miolo” dos lagostins (ou camarões), partem-se as cascas, as quais se fritam em óleo durante alguns minutos (usei azeite). Junta-se meia cebola picada, e duas colheres de sopa de pó de caril (o caril, e até o significado da palavra, dar-nos-ia tema para muitos textos; para o ensaio que relato utilizei uma mistura de especiarias já preparada há algum tempo, que me foi ofertada pelo Paulo Maia, e que inclui malaguetas, grãos de pimenta preta, folhas secas de caril, pó de curcuma, e sementes de coentros, de cominhos, de mostarda preta e de feno-grego). Mexe-se bem até a cebola ficar dourada. Junta-se um litro de água e uma cabeça de salmão (foi aqui que entrou a posta de corvina, em lugar da cabeça do peixe), tempera-se com sal e pimenta, e deixa-se em lume brando durante uma hora. Filtra-se o caldo, o qual retorna ao lume para ferver novamente, desta vez com duas cenouras, quatro tomates pequenos e um pimento vermelho, tudo cortado em quadrados (tomates) e tiras com dois ou três centímetros de comprimento (cenouras e pimento). Os legumes cozem durante quinze minutos, antes de entrarem 200 ml de natas. Levanta-se novamente a fervura, e juntam-se os lagostins (os camarões e a corvina em lascas, na versão experimentada). Tira-se a sopa do lume, e deixa-se repousar durante três minutos. Rectificam-se os temperos. As instruções sugerem ainda umas gotas de tabasco, mas essa opção depende da força do caril utilizado.

O resultado não faz esquecer a sopa original com os deliciosos lagostins islandeses, mas a receita é suficientemente sedutora para nos aventurarmos com outros mariscos e peixes. O segredo está no caldo e o toque final é dado por matéria-prima aquática de qualidade. Um inesperado prato de sabores orientais vindo das águas frias da Islândia, que não fica atrás das sopas de peixe preparadas nos países mediterrânicos e nos rios da Europa Central.

(Esta receita é especialmente dedicada e sugerida ao JLP, amigo das coisas da mesa e leitor e apreciador deste blogue. Esperamos que possa conhecer em breve a desejada Islândia. Aqui fica um cheirinho!)

Carlos Miguel Fernandes

Wednesday, December 06, 2006

À Mesa do Mundo - II (Saegreifinn)

É costume dizer-se que as cidades portuárias partilham características comuns. Fala-se do ambiente de encruzilhada, do convívio canalha, dos marinheiros e das suas conversas épicas e turvas de álcool, pautadas pelas dames qui leur donnent leur joli corps, as quais vão entretendo os Ulisses invertidos com nostalgia do próximo porto entre uma peleja e um copo de rum. Mas em Reykjavik é diferente. No porto velho de Reykjavik não há des marins qui boivent, nem acordeões, nem gestos graves. A maresia está presente, nos cais há algum ferro retorcido e ferrugento, mas envolve-nos uma aura asséptica, que na verdade se estende por toda a cidade, mas que se estranha ainda mais no porto, dado os hábitos alimentares das gentes do mar islandês, pouco dadas a modernidades hipócritas. Os marinheiros islandeses não se coíbem de afinfar um golfinho ou uma baleia, animais de pelúcia da sensibilidade urbana, e é no porto velho que o gastrónomo curioso pode encontrar tais regalos. E se o golfinho acabou por escapar (pode-se encontrar, em carpaccio, no Tveir Fiskar, mesmo à entrada do porto), a baleia foi provada, e aprovada, no Saegreifinn, mistura de tasca e mercearia, situado num dos barracões verdes que se enfileiram junto à água.

Carlos Miguel Fernandes, Reykjavik (Saegreifinn), Setembro de 2006

Logo à entrada somos recebidos com canapés de baleia-anã fumada, a fazer lembrar a moxama de atum algarvia e andaluz numa versão mais adocicada e macia. Se em confronto com esta última, dada a força do sal, só se aguenta uma cerveja gelada, já a baleia fumada aceita um copo de vinho tinto. Infelizmente, nem uma coisa nem outra se podem encontrar no local. As despóticas restrições islandesas transformam as prateleiras do Saegreifinn em tristes repositórios de água, de coca-cola, e de um líquido de baixíssimo teor alcoólico, produzido especialmente para ser vendido fora das lojas do Estado e que só com muito boa vontade se pode chamar cerveja. Só a comida nos salva! E, para começar, nada melhor do que o chamariz da casa, uma sopa de lagostins, preparada canonicamente, e cuja receita poderá ser encontrada em breve aqui, Na Cozinha. Fabuloso, com um toque exótico dado pelo caril combinado com a nata (já imagino uma variante com leite de coco), que não se encontra nas sopas de peixe mediterrânicas e continentais. Depois de aquecido o espírito com o caldo marítimo, escolhe-se uma espetada da montra, a qual será grelhada na hora. Peixes há muitos, do bacalhau ao halibut (sempre esgotado), passando por outros nomes menos habituais, como a pescada-carvoeira ou o peixe-gato. A estes junta-se novamente a baleia-anã, excelente proposta, e ainda o corvo-marinho, cuja carne se apresentou um pouco seca, não sabemos se por culpa de uma assadura desmazelada ou devido às características do bicho. Quem quiser ir por caminhos mais leves, pode escolher um dos muitos peixes fumados em exposição (salmão, arenque, truta,...) ou um pacote do típico peixe seco islandês, e picar, descansando nas mesas compridas da casa. (Claro que, sem uma cerveja, não se pode comer peixe seco com a alma preenchida.) Outras curiosidades da cozinha islandesa, como o bacalhau podre, a foca recheada ou o arau-de-crista (ou papagaio-do-mar) também podem ser provadas no Saegreifinn, conquanto não as tivéssemos encontrado, ou por ausência da matéria-prima, ou por não sabermos como pedir.
As falhas do Saegreifinn não se esgotam na ausência de bebidas decentes. A hora de encerramento, prematura para quem pretende jantar, e os talheres de plástico e pratos de esferovite, são factores que não atraem os mais exigentes. Mas a qualidade e a variedade dos produtos, e os preços muito abaixo dos elevados padrões de Reyjkavik, são argumentos suficientes para levar qualquer apreciador de peixe e marisco à taberna de Kjartan Halldorsson, o pescador reformado que vai gerindo com eficácia esta casa sita à beira da baía de Reykjavik.

Carlos Miguel Fernandes