Monday, April 24, 2006

Outra Refeição

O aroma do refogado de tomate e cebola devolveu-o ao mundo suportável. Vinha de uma casa de pasto para a qual se descia por uma escada de cimento construída entre as pedras que delineavam o cais. Viu caçarolas fumegantes cheias de mexilhões à marinheira. Eram horas e um magnífico local para tirar a barriga de misérias.
Manuel Vázquez Montalbán, Tatuagem

Havia chegado a altura de nos atirarmos aos tesouros trazidos das recentes visitas a Barcelona e à Deli Delux. Para isso, era necessário preparar uma refeição que enquadrasse os petiscos e procurar bebidas adequadas. Finalmente, neste fim-de-semana, o evento concretizou-se. Tudo começou com uns burriés e uns berbigões inesperados, que, mesmo estando frescos, só confirmaram a dificuldade em arranjar marisco de boa qualidade em Lisboa. Interessantes, os bichos, mas olvidáveis. Depois, veio o céu. Preparou-se uma tábua de queijos com o Tartufo e o Scarmoza da Deli, com um manchego fumado comprado numa rua do bairro Gótico de Barcelona, e com um queijo de cabra coberto com paprica, adquirido no mesmo local. Queijo de ovelha e cabra, como se quer num tábua decente, com o toque gracioso do leite de búfala do Scarmoza (ficou guardado um Azeitão, para outra ocasião). Perfeito. O Tartufo e o Scarmoza (este último provado pela primeira vez) são queijos de qualidade suprema, donos de sabores complexos e delicados. Emocionam qualquer apreciador de queijos, e têm potencial para converter os mais cépticos. Os dois queijos espanhóis, sendo exemplares de outra categoria, lutaram mesmo assim galhardamente, conquistando a aprovação de todos os que estavam à mesa. O de cabra parece vir de uma produção pouco industrializada, e dificilmente será encontrado por quem ler estas linhas se não viajar até à Catalunha. Mas aqui fica o nome, para quem quiser registar: La Pastora d’Olo. A escolha do vinho para acompanhar a tábua incidiu em França, pois nestas coisas da mesa, é país que sabe o que faz. Foi um magnífico Châteauneuf-du-Pape (Soleil et Festins) de 2001, comprado na Deli Delux, que nos acompanhou durante a aventura queijeira.
Logo a seguir passou-se para a secção dos fumados. Lomo Ibérico trazido de Sevilha, e Fuet e ovas de maruca de Barcelona, demonstraram mais uma vez que , do outro lado da fronteira, não se brinca com os embutidos e os ahumados. Para completar a secção dos petiscos, vieram as gambas, tratadas de duas forma distintas: ao alhinho, e com sambal (Udang Goreng), à maneira indonésia.
Depois começaram os pratos, que me abstenho de comentar, pois só critico obra alheia:
- Carapaus alimados com pasta de azeitonas, alcaparras e anchovas, aveludado de batata doce, pimentos assados (com azeite da Herdade de Manantiz) e camarão do Árctico;
- Favas com línguas de bacalhau e amêijoas, e bacalhau confitado com cogumelos salteados e gamba com gengibre;
- Raia sobre pão catalão, com espetadinha de camarão e açorda de ovas de bacalhau;
- Costeletas de pato com mel, e fettuccine de castanha com marisco;
- Sorvete de lima e hortelã, camembert no forno e bananas fritas;

Acompanhou-se a refeição com alvarinho Deu La deu, cerveja Hoegaarden e Franciskaner, consoante o prato na mesa. Os últimos dois pratos não resultaram naquilo que fora previamente planeado, devido ao cansaço e às muitas horas de mesa que já começavam a pesar. Faltaram, principalmente, o risotto de cogumelos para acompanhar o pato, e alguns pormenores à sobremesa, que lhe dariam outras cores e cheiros.
Não comento os resultados, mas prometo revelar algumas receitas no blogue Na Cozinha. Quero só acrescentar que o sorvete de lima e hortelã, quando agregado a um pouco de cachaça, resulta num excelente estabilizador de palato, situando-se algures entre a caipirinha e o mojito.

(Este texto é publicado simultaneamente nos blogues No Mundo e Na Cozinha)

Carlos Miguel Fernandes

Thursday, April 13, 2006

Uma Refeição (3), Foie Gras Frito na Própria Gordura com Compota de Maçã, Presunto de Pato Crocante e Mandioca

A vedeta deste prato é o foie gras fresco. O fígado engordado de pato ou de ganso abriga um dos sabores mais egrégios que se pode ter à mesa. É quase sempre associado à cozinha francesa, mas há muito tempo que faz parte do receituário tradicional da Hungria (um dos grandes produtores de fígado de ganso), e já entrou definitivamente na nova cozinha espanhola. Por cá, começa a ver-se com alguma frequência nas ementas dos melhores restaurantes, mas, infelizmente, não se encontra facilmente nos mercados ou noutras lojas (que saudades dos fígados amontoados nas montras do Mercado Central de Budapeste). Por isso, os pequenos boiões com os fígados cozidos e em conserva, que se podem comprar nas melhores charcutarias e que mantêm o sabor quase inalterável, são uma boa alternativa. Se quiserem, também podem substituir o foie gras por fígados de pato comuns, que não passaram pelo processo de engorda. Esta é, contudo, opção de ensaio, à qual falta a arrebatamento que se desprende do produto genuíno, e que transforma uma entrada interessante num manjar de reis. Quem optar pelos fígados normais tem apenas que adicionar um pouco de gordura na altura de fritar as iscas.
O prato exige alguns tachos e mão rápida para que nada arrefeça. Deve começar-se pela compota porque esta demora alguns minutos a apurar os seus sabores. Para quatro pessoas, cortam-se duas maçãs (sem casca) em pedaços que se salteiam em cerca de 75 g de manteiga a ferver. Juntam-se duas colheres de açúcar mascavado, uma colher de sobremesa de casca de laranja cortada em juliana e meia dúzia de uvas cortadas ao meio, sem pele nem grainhas. Rega-se com uma ou duas golfadas de Vinho do Porto e deixa-se cozinhar em lume brando (se o molho começar a rarear pode acrescentar-se mais manteiga).
Enquanto a maçã fica no fogo, cortam-se quatro fatias de foie gras com um a dois centímetros de espessura. Polvilham-se com um pouco de flor de sal e, num tacho anti-aderente, sem usar nenhuma gordura para além daquela que é libertada pelo fígado, fritam-se as fatias durante cerca de um minuto de cada um dos lados, ou até ficarem estaladiças por fora (sem queimar). Se se conseguir esse efeito, e se o interior se mantiver mole, está atingida a perfeição do foie gras. (Nesta altura, convém verificar a compota. A maçã deve ficar mole, mas sem se desfazer. Desligue-se o fogo antes disso acontecer.)
O presunto de pato — que se consegue adquirir, fatiado, em quase todos os hipermercados — deve ser frito em azeite muito quente, durante dois ou três minutos, até ficar crocante. Para terminar cortam-se quatro lascas de mandioca, que se fritam em óleo de amendoim. (Pode usar-se o azeite do pato para fritar a mandioca. Contudo, prefiro o óleo de amendoim porque este não acrescenta sabores aos alimentos. O azeite, por outro lado, liga-se bem ao presunto de pato. Aliás, o azeite acompanha bem qualquer produto fumado.)
No empratamento, coloca-se a compota no centro, sobre a qual se estende a isca de foie gras, em primeiro lugar, e o presunto de pato, por cima de tudo. Ao lado, encosta-se a mandioca. Pode ainda polvilhar-se o conjunto com algumas frutas secas (pinhões e castanha caju partida), e, ao lado, fazer um risco de Vinho do Porto reduzido.

Carlos Miguel Fernandes